30 DE JANEIRO DE 1964 2999
cessidade de uma profunda, se não radical, reforma das normas que há 30 anos regulam a actividade dos corpos administrativos do ultramar - a Reforma Administrativa Ultramarina, posta em vigor pelo Decreto n.º 23 229, de 29 de Novembro de 1933. Lá, como cá, são grandes os queixumes, é imenso o vozear contra muitas das práticas administrativas que a Reforma Administrativa Ultramarina autoriza, e que, por mau uso, mais desservem do que servem aquilo a que noutros tempos se chamava «bem comum do povo». Desconhecido este, ou relegado para a penumbra onde se estiolam os inocentes condenados ansiando pelo dia da reabilitação, o que impera é o critério pessoal a fazer transparecer uma disposição ou inteenção também de ordem pessoal
Pelo modo como a tutela se manifesta, pode perceber-se, com precisão barométrica, o momento em que o presidente de uma câmara cai no desagrado. A partir de tal momento a câmara, a vida do município, mergulha em ponto morto até que factos posteriores coloquem na presidência outro incauto cidadão cheio de boa vontade, a quem está destinada, mais tarde ou mais cedo, a mesma sorte.
Com a crescente hipertrofia da Administração mais propícia se tornou a acção das entidades tutelares, num verdadeiro jogo das escondidas com o município.
A Reforma Administrativa Ultramarina discrimina exactamente os actos ou deliberações municipais sujeitos à tutela e indica, em relação a cada um, a entidade competente para exercê-la. Mas o inconveniente, que é pretexto de muita utilidade, está em que, já depois da vigência da Reforma Administrativa Ultramarina, os territórios do ultramar passaram a ter nova divisão administrativa, voltando-se das províncias aos distritos, e novas entidades auxiliares dos governos-gerais foram instituídas.
No estrito domínio da Reforma Administrativa Ultramarina eram entidades tutelares dos corpos administrativos: o governador da província, a junta provincial e o governador-geral. A orgânica posterior extinguiu as províncias, dando a vez aos distritos. Por isso, a tutela passou a ser exercida pelo governador do distrito, pelo director dos serviços da administração civil, pelo secretário-geral do governo e pelo governador-geral.
São indescritíveis e incalculáveis os prejuízos que o sistema tem acarretado à vida municipal em Angola. Dada a limitada competência das câmaras, a intromissão tutelar tornou-se absorvente, irritante e desalentadora. E não me coíbo, nesta altura, de repetir, com a devida vénia, uma afirmação do ilustre Deputado Dr. Antão Santos da Cunha contida na sua brilhante intervenção na sessão do passado dia 16:
A nossa vida política e administrativa está vazia de espírito, de doutrina, de mística; um tecnicismo frio e duro, um burocratismo desumano e pouco compreensivo estancam as fontes do entusiasmo e da devoção, sem os quais não há obra que valha e que perdure.
Sr. Presidente: no ultramar cabe aos governadores-gerais criar e suprimir unidades administrativas no âmbito das circunscrições e postos. Pois bem: essa faculdade já serviu para, no curto espaço de um ano, ser alargada e diminuída a área do concelho de Luanda.
Um governador-geral entendeu ser necessário alargá-lo para melhor poder defender a execução do respectivo plano de urbanização; porém, o governador que lhe sucedeu entendeu precisamente o contrário, e vá de reduzi-lo aos limites do próprio foral da cidade, reservando-lhe uma faixa periférica de 6 km de profundidade, a que foi dado o nome de zona rural de protecção, e que, em rigor, já pertence à jurisdição de outra entidade administrativa.
À. custa da área retirada ao concelho de Luanda foi criada uma nova circunscrição; sem base populacional nem economia que lhe dê uma relativa individualidade. Esta providência deu origem a uma confusão de atribuições e aos inevitáveis conflitos de jurisdição entre a nova circunscrição e o velho município. Mas o mais grave foi a Câmara de Luanda ter ficado lograda na possibilidade, que a lei lhe conferia, de tributar com o imposto de mais valia os terrenos que se valorizaram por motivo do plano de urbanização, por terem sido subtraídos da sua zona de jurisdição.
Tudo correu serem ter sido prestada a menor atenção à Câmara, que nada conseguiu com o ter reagido. Se o governador é quem manda; se ele é quem escolhe e nomeia os presidentes das câmaras, para que serve reagir? Ora, o caso seria bem diferente se à constituição dos corpos administrativos presidissem outros critérios.
E que dizer das comissões municipais e das juntas locais? Os inconvenientes agravam-se multiplicadamente. Os presidentes destas autarquias são natos. Cabem, por inerência, tais funções, respectivamente, aos administradores de circunscrição e aos chefes de posto (agora chamados administradores de posto). Quer na circunscrição, quer no posto, aqueles funcionários reúnem todas as com-petências e atribuições: são magistrados, administradores, polícias, notários, cobradores de impostos, correio, empreiteiros de obras públicas, agentes dos serviços agrícolas, fiscais do trabalho e julgadores dos respectivos conflitos e até, algumas vezes, chegam a ser delegados de saúde. Só este facto torna gritantemente imperativa a radical modificação do sistema administrativo.
Os restantes membros das comissões municipais e das juntas locais são, pelo normal, comerciantes e agricultores, pessoas cuja vida gravita na órbita omnipotente dos respectivos presidentes, resultando limitarem-se conscientemente ao papel de impassíveis comparsas dos mandos e desmandos daqueles funcionários. Quem ousa opor-se-Ihes? A vida custa muito, e ninguém anda lá para complicá-la.
Passemos, agora, ao capítulo de rendimentos e encargos. Promulgou-se há anos para Angola uma reforma tributária que ainda hoje vigora. Só os corpos administrativos foram gravemente afectados nas suas receitas. Basta dizer que no termo, salvo erro, de seis anos de aplicação do novo sistema a Câmara de Luanda recebera menos 200 000 contos do que teria recebido pelo sistema anterior. Até então vinha comparticipando nas receitas do Estado provenientes dos direitos de importação e cobrando licenças pelo exercício de comércio, indústria e profissões liberais. A nova reforma tributária retirou-lhe estes rendimentos, que constituíam a sua principal fonte de receitas.
Em compensação, permitiu-lhes o lançamento de um adicional à contribuição industrial, que pode ir até ao limite de 50 por cento, e determinou que o Governo da província lhes concedesse um subsídio anual, de montante não inferior à média das receitas dos últimos três anos, dos adicionais aos direitos de importação reportados à data da publicação da nova reforma tributária.
O facto mais saliente desta providência foi terem ficado os corpos administrativos na mais completa dependência e subordinação do governador-geral, porque a vida financeira daqueles ficou absolutamente à mercê da generosidade do primeiro magistrado da província.
E passo por cima das receitas miúdas, com a anotação de nada caber às câmaras municipais dos rendimentos da circulação automóvel, tendo entanto, a seu cargo