6 DE FEVEREIRO DE 1964 3127
gue, o factor geográfico e biológico. Aliás, elementos que se cruzam numa interpenetração onde muitas vezes não é fácil destrinçar a interferência de cada um. A cultura é o património espiritual que um povo através das gerações foi lentamente arrecadando e enriquecendo e onde mais vivamente se projecta a originalidade do seu génio e se reflectem as vicissitudes da sua história.
Por isso também é a herança cultural o que melhor caracteriza e extrema as nações. E pode até dizer-se que é na unidade e especificidade de uma cultura que se funda a nação, cuja alma é a consciência de destinos comuns a realizarem-se na história.
Da terra e do sangue que já tão vivamente impregnou a cultura também dependemos por vínculos vigorosos e fundos.
Dependemos da terra, que é donde nos vem a seiva da vida, que cria a nossa carne com a sua carne e à semelhança da sua carne, por uma perene transfusão do seu ser. E que assim como faz o nosso corpo, modela a nossa alma, porque toda a sua fisionomia se espelha no nosso mundo espiritual: o seu clima, os seus relevos, a sua paisagem, a sua vegetação, a sua bruma melancólica ou a alegria radiosa do seu sol.
Dependemos do sangue, nós, que somos o prolongamento dos nossos pais. Nós, um elo da grande cadeia das gerações.
Cada grei representa um encadeamento de esforços, uma cooperação sucessiva de vontades, uma tradição. E o homem não é mais que o usufrutuário dessa herança acumulada de pais a filhos. Todo o passado da nossa raça revive em nós, na nossa fisionomia, nos nossos actos, na nossa vida espiritual. É na terra dos túmulos que mergulham as raízes criadoras do nosso ser. Delas haurimos a seiva fecunda que alimenta a nossa vida.
Renascem em nós os mortos, com as suas ideias, as suas crenças, os seus sentimentos. São as suas vozes que nos comandam. «Lês vivants sont gouvernés par lês morts» - clamava sabiamente Augusto Comte.
Dependemos da terra e da grei na perpétua criação das suas núpcias abençoadas, na sua perene comunhão de afectos e de energias.
Porque, se a nossa terra tem para nós um sentido profundo, que as outras não têm, é porque ela foi já a terra dos nossos pais. Ali tiveram eles o seu berço. Ali viveram e sofreram. Ali descansam em paz os seus restos sagrados.
E assim como já a terra se projectou neles, na mesma os alimentou do seu ser e os criou também, como a nós, à sua imagem e semelhança, assim eles retribuíram à terra, em bênçãos e carinhos, o seu amor maternal. A cada canto sentimos o produto do seu trabalho, a criação do seu amor, o suor derramado dos seus esforços: nos templos e nos monumentos, nas cidades e nos campos, nos troncos seculares das árvores, cujo fremento as suas mãos confiaram ao solo criador.
Assim, o homem aparece carregado de vínculos que encadeiam, os vínculos sagrados da terra, do sangue e da cultura. E o homem só é homem se aceita nobremente a sua dependência, se reconhece a sua subordinação, submetendo-se à sua terra e aos seus mortos, ao património espiritual da Nação.
É essa a lição profunda dos Déracinés, como é a lição perene e soberana da vida. Porque só através desses laços, raízes permanentes da sua vida, é que o homem realiza plenamente o seu desenvolvimento espiritual. Só assim, na harmonia com as forças que o criaram, é que o homem se possui inteiramente. Só assim, recolhendo no húmus do passado a seiva elaborada pela longa experiência das gerações, é que ele toma consciência das forças secretas que o habitam e o trabalham.
O homem isolado é como o roble arrancado do solo. Só vinculado à sua terra, aos seus mortos e ao ambiente cultural o homem se compreende e o seu frágil destino individual toma um sentido profundo e uma finalidade mais alta.
Perante a nossa dependência é que sentimos a nossa força. E aceitando as cadeias que o homem ascende e se enobrece.
Apaga-se a «pobre criatura transitória» para se exceder a si próprio, integrando-se na família, na raça, na vida perpétua das gerações.
Pela subordinação é que o homem satisfaz a sua ânsia de durar, à sua nobre sede de imortalidade.
Com razão cantava a inspiração profunda de António Sardinha, o poeta das suas ideias:
Porque os limites doces que me imponho
Dão consistência às asas do meu sonho
E ajudam-me a subir ainda mais
Submisso ao passado, o homem prolonga-se no futuro, revivendo nos seus descendentes, como já nele próprio reviveram os seus antepassados.
E como o roble, subirá tanto mais alto e com tanto mais arrojo no espaço quanto mais fundas e mais vigorosas forem as raízes que o amarrem à terra criadora, donde provém.
Sr. Presidente: não hei-de sair desta tribuna sem dizer algumas palavras mais.
Primeiro, para aqui proclamar alta relevância, o significado nacional e histórico do grande interesse que o problema educativo suscitou, nesta hora, entre nós e do sentido construtivo com que está a ser considerado pelos altos dirigentes, em ordem à sua solução - uma solução ampla e acertadamente estruturada e tão rapidamente quanto o poderão consentir as realidades condicionantes da presente conjuntura nacional e a devida ponderação e complexidade do problema e dos problemas que envolve, das suas múltiplas incidências e implicações.
Olhando das grandes altitudes e numa rasgada perspectiva histórica, para que as coisas se projectem no contexto do espaço e na trajectória do tempo; para que se distinga o essencial do acidental e do contingente e o permanente do efémero e do transitório, para que os olhos se não enleiem no pormenor ou em visões unilaterais ou parcelares ou deformadas e tudo, seja considerado e tudo situado no seu lugar e proporcionalmente, numa ampla visão de conjunto - como é preciso para o julgamento valorativo, razoado e justo, de uma época; olhando, assim, de um ponto de vista adequado, podemos bem proclamar, sem nenhuma dúvida e sem sobrevalorização, que é verdadeiramente grandiosa e imponente a obra reconstrutiva e criadora realizada em Portugal, no grande ciclo histórico em que entramos a seguir ao levante de Maio. Grandiosa e imponente pelo seu volume e muito mais pelo seu significado histórico, verdadeiramente transcendente.
Mas, ainda que grandiosa, obra que tem, como toda a obra humana, as suas sombras e deficiências. Todo o esforço do homem padece desta tara insanável - a imperfeição. O nosso ideal há-de sempre macular-se na encarnação.
Sempre o ouro humano andará aliado à ganga VII das escórias. Nunca o homem poderá, na sua condição temporal, libertar-se do barro das suas misérias nem na sua obra deixarem de projectar-se as misérias do seu barro.
E também a obra do homem, de par com as imperfeições da sua natureza, há-de sempre ressentir-se da limitação dos seus meios e das possibilidades de que dispõe.