16 DE DEZEMBRO DE 1966 855
As serras, com serem serras, não dão só urze e giesta- mas aquelas riquezas todas, e mais ainda, que Torga tão admiravelmente cantou no seu «Um Reino Maravilhoso». Façamos com que elas possam crescer em abundância, afugentando as nuvens que lhes obscurecem o céu sob que hão-de desabrochar em viço e frescura.
Que SS. Exas. voltem breve a terras de Bragança.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Pinto de Mesquita: - Sr. Presidente: Para cumprimentar V. Ex.ª no início da actividade anual desta Assembleia, retomarei apenas a feliz invocação mirandiana do Sr. Ministro da Justiça aqui dirigida à sua destacada personalidade: «homem de um só parecer ...», todavia, com a ressalva de que, se «de corte homem não é», nela está, e muito bem, presidindo às Cortes.
Este meu antes-da-ordem-do-dia tem por objecto o Código Civil, publicado em 25 de Novembro, e sobre o qual já outros juristas desta Casa, recorrendo a processo similar, formularam judiciosas considerações que genericamente perfilho.
Decerto as normas de um diploma deste vulto serão sempre muito mais decisivas para a vida de um povo do que as de uma constituição política, através da qual só de anos a anos o cidadão soberano poderá usar gregàriamente de voto. Em contrapartida, um código civil representa como que a constituição do quotidiano, onde quase se não passa o menor acto da vida social que o não pressuponha, pelo menos, éminence grise.
Ora uma obra tal, mesmo de estilo lacónico, começa por nunca poder fugir a tornar-se extensa; os dois mil e muitos artigos da regra.
Por outro lado, a sua elaboração por técnicos, cuja dificuldade maior é a necessidade de se tornarem acessíveis aos que o não são, agrava a sua índole de tessitura subtilmente complexa, atinente à diversidade das instituições reguladas; e no entanto, cumpre manter no todo um nexo sistemático coerente. Isto basta para afastar limiarmente poder a sua aprovação depender da discussão em pormenor de uma assembleia da natureza desta.
A soma e qualidade individual ou colegial dos trabalhos preparatórios, tornados públicos, do código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344 - e ainda, nos termos do artigo 113.º da Constituição, sobre a mesa da Assembleia -, referendados por eminentes professores de Direito Civil,, dão-nos garantia sólida de que tal diploma representa genèricamente considerável progresso sobre o código precedente; sobretudo no seu adequado ajustamento às necessidades da actual vida social portuguesa.
Nestes termos, entendemos que, na impossibilidade prática de intervir vantajosamente no seu contexto, outra alternativa se nos não oferece lògicamente senão ou a de aprová-lo em bloco, ou a de em bloco reprová-lo.
Eu, por mim, na sequência dos oradores intervenientes a que me referi, e sem embargo das reservas que adiante me não dispensarei de formular, nenhuma dúvida ponho em aceitar o código globalmente.
De resto, neste particular me socorro dos precedentes ocorridos aquando da aprovação em 1867 do código de Seabra, em que Dias Ferreira, ao discutir em Cortes o projecto respectivo, proclamava, segundo reza o Diário de Lisboa daquele ano, a p. 2091:
Eu obrigo-me a votar o projecto qual ele está sem as emendas.
Isto afirmava o insigne jurisconsulto, pelo seu ulterior comentário verdadeiro S. Paulo daquele código, quando sabemos através do mesmo comentário divergir quanta vez, na especialidade, dos textos que genèricamente aprovara!
De resto, tem sido esta a dominante tradição portuguesa do período chamado «constitucional», quer sob forma ditatorial, quer por aprovação pràticamente global, quanto a diplomas atinentes aos grandes ramos de direito, evitando-se o inconveniente da sua discussão parlamentar: temos em 1833, em ditadura, o primeiro código jusprivatístico português, o comercial de Ferreira Borges; logo, as reformas judiciárias, os códigos administrativos, o Penal, o Código Civil, importantíssimas disposições da legislação de 1910 sobre família, divórcio, etc., o decreto sobre águas, e até, no presente regime, a reforma civilista de 1930 e os códigos processuais.
Isto só significa em matéria destas o óbvio imperativo da natureza das coisas.
Esta a minha opinião pessoal perante o problema posto a esta Câmara pela iniciativa do Governo. Este, podendo constitucionalmente furtar o novo Código Civil a eventual interferência da Assembleia, muito de propósito, como frisou o Sr. Ministro da Justiça na sua exposição, o quis publicar no âmbito de um prazo em que a mesma sobre ele pudesse pronunciar-se; ou expressamente pela iniciativa concertada de, pelo menos, dez Deputados, ou pelo automatismo plaudente do silêncio.
Sem o mínimo propósito premonitório quanto ao que ocorra verificar-se nesta Casa até ao termo das dez sessões sabidas, aqui pretendo deixar consignado o principal do meu modo de ver quanto ao novo código.
Sou levado, como atrás disse, à sua aceitação como um todo, primeiro, porque nele não notei, quanto a princípios essenciais, alguma coisa de inibitório para a minha consciência; segundo, porque o somatório das perfeições que comporta em relação ao de Seabra, quer tècnicamente, quer sobretudo na relatividade do seu ajustamento às necessidades da época actual, pesam no prato positivo da balança incomparàvelmente mais do que o negativo das discordâncias, reservas, reparos ou dúvidas que por minha parte ocorra atribuir-lhe.
E, assim, comecemos sucintamente pelo activo, a que o Sr. Ministro, na sua exposição, e alguns Srs. Deputados deram já merecido relevo. Isto me dispensa de ociosa repetição, e só por tópicos o trataremos.
Em primeiro lugar, a sistematização das matérias, regressando-se à tradição romanista devidamente modernizada - o código alemão e subsequentes - e evitando-se a inspiração individualista que Seabra introduziu no seu diploma. Esta, à parte curiosa originalidade, contribuiu assaz para a difícil arrumação das instituições, quebrando-lhes frequentemente o nexo das melhores afinidades.
Temos depois, na generalidade, o seu propósito social, impregnando principalmente os institutos das obrigações e de família e, embora de forma menos premente, parece-nos, as relações sucessórias e de propriedade.
Nesta directiva se promoveram garantias de defesa da boa fé negociai, o apelo frequente à equidade - mas esta felizmente -, em concreto a aceitação das teorias do abuso de direito, da imprevisão, do enriquecimento sem causa, da justa rescisão do negócio usurário (a velha figura da lesão). Outrossim são de aplaudir: a substituição do regime de comunhão de bens nos casamentos como supletivo pelo da simples separação, a intervenção oficiosa preparatória - embora com melindres a acautelar - na filiação ilegítima e a deslocação dos prazos para as investigações, tudo no sentido de lhes garantir foros de maior seriedade o certeza.