16 DE DEZEMBRO DE 1966 899
porque reflecte, sempre também, um conceito do homem, uma filosofia da vida. Não pode dispensar este fundo humano, porque elaborado pelos homens e para os homens. E ai da lei sem humanidade! Deixaria de ser defesa e protecção da pessoa humana, para se converter em jugo insuportável, talvez numa sinistra armadilha.
E sendo a humanidade só uma, essencialmente a mesma nos vários quadrantes geográficos e na diversidade de etnias, as leis de um código não podem ser mero expoente dos particularismos de grupos ou escolas, nem mesmo de um agregado nacional. Do homem de sempre para o homem de sempre, e do homem de todos os meridianos para o homem de todas as latitudes, a lei não pode (sem desastre) desprender-se do permanentemente e universalmente válido, tem de ser fiel a uma certa intemporalidade de conteúdo e de escopo.
Regressando ao pensamento inicial, lembra-se que não se pode estar sempre a mudar o esqueleto dos organismos sociais, como não pode substituir-se o esqueleto de um indivíduo sem lhe destruir o próprio organismo, no que ele tem de específico, de humano. A validade deste ponto de vista deduz-se até do facto de o primeiro código civil ter vigorado um século, apesar de haver nascido na época das locomotivas e de ter chegado à era dos jactos.
Sr. Presidente: Não se esqueça, porém, de associar ao essencial o acidental, ao comum o próprio, ao específico o peculiar, ao universal o nacional, pois cada povo tem a sua psique e sua índole, como os indivíduos o seu feitio, virtudes e defeitos particulares. Sem atender a uns e outros destes valores e an a valores, frustram-se os esforços dos educadores, na família e na escola. No plano social, os esforços frustrados seriam os dos legisladores.
Não se olvide ainda que esta velha e sempre jovem árvore que é o homem tem raízes no transcendente. E as árvores crescem para o alto ou na horizontalidade, com maior ou menor aprumo e regularidade, naturalmente. Mas todas dependem, no seu crescimento, da semente de que germinaram, das raízes que as seguram e alimentam e da natureza do solo em que as mesmas raízes se fincam.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: O homem não é apenas, uma entidade biológica, mas um ser moral, com uma estrutura que ele não pode alterar, com uma inconfundível dignidade que lhe advém da natureza, e a que ele próprio não pode renunciar, por direito inalienável, que não apenas inauferível. Não posso deixar de me sentir satisfeito com ver ultrapassada a escola do positivismo, condenável, mais que pelo seu pragmatismo, pelo seu absolutismo: por se me afigurar uma forma de autoritarismo do homem a impor-se aos homens seus irmãos (apesar da válvula do escape do... contrato social); pelo que representa de arbítrio e poder discricionário, de supersticiosa idolatria que atribui à lei uma majestade que recusa ao homem, substituindo a realidade pela abstracção, a pessoa pela sua sombra.
Outra nota de registar com satisfação, Sr. Presidente, é o sadio regresso aos perenes caminhos e sugestões do direito natural. Neste clima, o homem sente-se com direitos que não dependem exclusivamente da vontade dos grupos, e que existem e subsistem na consciência, independentemente da vontade e do reconhecimento dos outros homens. Assim., por exemplo, não seria necessário apontar o direito divino positivo, como fonte de indissolubilidade do vínculo do matrimónio: O que Deus uniu, não o separe o homem...
Está a sugeri-lo, mesmo a gritá-lo, o bem comum (social e familiar), a felicidade dos esposos, a segurança, educação, saúde e dignidade dos filhos e, sobretudo, a própria natureza. O pintainho precisa apenas de minutos para acompanhar a galinha nas lides do ganha-pão. E os outros animais carecem de algumas horas, dias ou meses para se bastarem e tornarem autónomos. Por isso, os progenitores, passada a época da procriação, desfazem a sociedade.
Com o homem sucede o contrário. Ordinariamente, só aos 20 ou 25 anos o jovem poderá considerar-se bem preparado para a vida, na posse e utilização eficiente de um diploma, no domínio e prática de uma profissão e pela conquista de uma maturidade humana que o defenda e aos seus de aventuras desastrosas. Respeitada a ordem da natureza, o último filho entrará na casa dos pais por volta dos 40 ou 45 anos da mãe. Com mais os 25 necessários para se considerar concluída a educação do derradeiro rebento, de modo a prescindir da união dos pais, somam 70. Só nesta idade poderão os pais separar-se, sem inconveniente de maior para o filho, a algo tarde para ir cada um para seu lado, a manquejar de reumatismo. É tarde para refazer vidas... Noutra idade, dissolvido o vínculo, ainda poderiam sonhar com isso. Digo sonhar... Apenas sonhar? Não, mas... estragar mais vidas, vidas em série.
Com efeito, o cônjuge culpado não é fácil que mude e, por isso, irá fazer outra vítima. E se culpados suo os dois, cada um deles fará a sua vítima. E o fenómeno repete-se, progressivamente, em adições e multiplicações desta sinistra aritmética.
Não há dúvida, não é preciso apelar para o direito divino- positivo para se condenar o divórcio, mesmo entre os não baptizados. Unidos, não pelo matrimónio-sacramento - nem dele seriam capazes por inabilidade radical -, mas pelo casamento- civil, para eles matrimónio verdadeiro e único possível, o seu vínculo é indissolúvel, definitivo, à face da lei natural. Ocorre-me a atitude de saudoso e insigne mestre de Direito. Havendo sustentado publicamente que só o matrimónio católico era indissolúvel, vários anos depois, revendo a sua posição no plano das ideias e das razões, sentiu na consciência a necessidade de vir para as colunas da imprensa rectificar o seu pensamento.
Tenha-se ainda presente, todavia, que uma comunidade é uma complexidade. E uma comunidade moderna, muito mais. Daqui nasce a circunstância de os estadistas, se não querem legislar no vácuo nem atirar parágrafos ao vento, haverem de proceder com uma certa maleabilidade, que não se compadece com uma rigidez geométrica, doutrinalmente irrepreensível, mas desintegrada do real.
O relevo dado à dimensão social do homem pelo novo código representa, simultâneamente e sem paradoxo, um sadio retorno e uma sadia actualização. Retorno à realidade do homem, mais de simples unidade, isolada, do complexo social. E actualização, por integrar a legislação portuguesa, neste domínio, na idade do social. E de aplaudir são os termos da registada evolução. Pois, saindo do individualismo egoísta, não entrega a pessoa humana, de mãos atadas e corda ao pescoço, às impertinências e arbítrios do intervencionismo do monstruoso polvo colectivista. Neste personalismo, nem o bem comum anula o particular, nem o particular ignora a razoável prevalência do comum.
Não me faltasse o tempo e diria, ainda, quanto me soam bem, na consciência, as novas disposições relativas à boa fé, culpa, restituição, adopção e posição da mulher na família e na vida. Concluirei, acentuando não ser favor aceitar que o novo código, regulador das nossas relações privadas é «a tarefa de mais ampla projecção»