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1 DE FEVEREIRO DE 1969 3073

secular na modulação fonética, na formação vocabular, no jeito de ligar as partes da proposição e na regência das palavras. E isto com tanto maior empenho e solicitude quanto mais numerosos são os interstícios de fuga e os meios de evaporação.

O panorama actual do nosso idioma não é consolador. Verifica-se a tendência, cada vez mais sensível, para falar e escrever cada vez pior o português. As caudas desta degenerescência, que pode um dia lesar perigosamente a nossa dignidade colectiva, estão de há muito apontadas: o descrédito lançado sobre o ensino da gramática, exclusão do latim nas escolas, a lição cada vez menor dos clássicos, a corrente de traduções ineptas e o servilismo perante os idiomas estranhos. E nesse panorama todos nós temos uma parte de culpa, porque nele todos lançamos, por incúria, desamor ou ignorância, uma nódoa, ou uma sombra, que agora é um solecismo, logo um neologismo, depois um barbarismo, e quase sempre desalinho na composição, impropriedade nos termos e obscuridade na frase.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sim, todos nós temos uma parle de culpa. Nós, digo, os professores que não ensinamos, com gosto e esmero vivificantes, as regras e a sua aplicação, e descuramos, nas disciplinas que regemos, a expressão, ou julgamos alheia ao nosso ofício a emenda, nos pontos e exames escritos, da grafia errada, da pontuação viciosa e do outros delitos formais. Oh! Como andamos esquecidos de que as lições de língua são também lições de lógica, de observação, de estética e de probidade! Nós, digo, os que escrevemos para os jornais e, na celeridade da função, não empregamos o termo próprio, ou desatamos em períodos gongóricos, ou nos comprimimos em frases de concisão telegráfica.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nós, digo, os que na rádio e na televisão lemos os noticiários com ênfase ou com depressão e não raro agredimos o público com locuções bárbaras, dizendo, por exemplo, "periodo" em vez de "período", ou "riu" em vez de "rio". Nós, os que, nas legendas dos filmes, acentuamos mal e pontuamos pior, cometendo lapsos pueris e irritantes, como este de separar com vírgula o sujeito do predicado. Nós, os magistrados municipais, que, menosprezando a polícia da língua, admitimos, como se estivéramos em terra estranha, a nova vaga de termos estrangeiros, como snack-bar, drug-store e boite. Nós, os actores, que, no palco, engolimos, em dramática impreparação, metade das palavras e damos à frase um ritmo descompassado do assunto. Nós, os tradutores, que, parecendo conhecer melhor o idioma do autor do que o nosso, usamos circunlocuções e versões literais repugnantes ao bom senso e ao génio da língua. Nós, digo, os parlamentares, que devíamos ser uma forca militante contra a dilaceração do idioma, e somos muitas vezes os primeiros a esfarrapá-lo. E. finalmente, para não alongar mais a lista dos réus de lesa-idioma, também aponto os escritores em prosa e verso, que deviam ser os vélites da vernaculidade e elegância, e são os seus mais desleixados e sórdidos prostituidores. Por cem ou duzentas moedas num dia de apuro (disse um dia a Ramalho Alexandre Herculano) o Garrett seria capaz de todas as porcarias que quisessem, menos de pôr num papel, a troco de todo o
ouro deste mundo, uma linha mal escrita. E de si mesmo afirmava Lopes Vieira:

Quando no que escrevo descubro um erro contra a linguagem, punge-me um remorso que eu sinto nascido de meu sangue: é um remorso étnico que me desola, não já como mau artista, mas como matador da pátria.

Onde, se encontra hoje - pergunto eu - um homem de letras com iguais escrúpulos de consciência estética e linguística?

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Por tudo isto, não admira que, sendo os mais responsáveis a darem exemplo de infidelidade e corrupção, o comum das gentes se considere dispensado de evitar n indisciplina, e que a mocidade, perante vagas e vagas de desregramento, se modele pelo nível mais baixo do comunicação, exprimindo-se em tautologias enervantes, e usando uma gíria pavorosamente anémica e hipocorística. E, como se isto não bastara, alguma imprensa dá guarida, em páginas juvenis, a escritos em que não se respeitam as regras mais elementares da gramática, e se reproduzem esquálidos e tolos conceitos numa grafia sónica que roça pelo absurdo. Tal despautério, sobre ofensivo do bom gosto, gera a mais arbitrária licença do impudor linguístico e mental, tão certo como é que a inteireza do espírito (cito Rui Barbosa) começa por se educar no escrúpulo da linguagem. Bem, pois, dizia o recém-falecido António Sérgio:

Consideremos responsável da intranquilidade pública quem quer que não busca corporizar a ordem - a exactidão, a probidade - na frase que diz ou na prosa que escreve.

Mas, se passarmos ao plano mais elevado da elaboração científica, não teremos também razões de contentamento. Basta dizer que não possuímos uma única revista mensal que se ocupe exclusivamente da história, filologia, gramática e estética da língua, e tão lamentável carência não consegue ser compensada pela publicação de um boletim e de algumas escassas teses, lições e ensaios que saem de tempos a tempos sobre assuntos da língua. São também muito raros os congressos ou reuniões de estudiosos da língua, bem como a realização de conferências, o que denuncia fraca actividade num campo que tem de ser incessantemente cultivado, se pretendemos prestar aquele mínimo de assistência que se impõe ao mais característico meio de transmissão da nossa mentalidade. Por outro lado, e apesar do benemérito empenho de algumas casas editoras, pode afirmar-se que a edição dos clássicos portugueses, mestres da vernaculidade e joalheiros da beleza, se faz com intermitências, omissões ou em doses parcelares, ou ainda a tais preços de venda que inibem os curiosos e os amadores de os adquirir.

Tudo isto evidencia a debilidade do aparelho científico de defesa e propagação do português, e é para os verdadeiros patriotas motivo de apreensão. Creio, no entanto, oportuno e justo lembrar, em contraste com este árido panorama que acabo de esboçar, dois factos que, pelas suas profundas consequências, merecem particular anotação, e referir uma instituição cujos serviços não serão nunca bastantemente encarecidos.

O primeiro facto foi o I Simpósio Luso-Brasileiro, realizado em Coimbra em Maio de 1967, com o quádruplo fim de apreciar as variedades cultas do português con-