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27 DE NOVEMBRO DE 1970 1015

rito metódico e o domínio da vontade; o estudo sério das humanidades, da filosofia e da teologia, abrem-lhe as portas do conhecimento crítico.

«Devo àquela casa grande parte da minha educação e aqueles bons padres a minha formação e disciplina intelectual» - haveria de proclamar mais tarde.

O curso de Direito fá-lo com classificações que espantam quantos por lá passaram.

E no final um facto circunstancial atira-o irremediavelmente na senda das ciências político-sociais.

Foi o caso de, por falecimento do Dr. Marnoco e Sousa, o Dr. Salazar ser convidado, de imediato, para reger a cadeira de Finanças. Estava em definitivo marcado o seu destino.

O moço seminarista, disciplinado e metódico, o rapaz com ideias sérias, era agora professor da Universidade mais prestigiada do País e tinha ali o mundo, o seu mundo a rodeá-lo: uma cela monacal a servir-lhe de gabinete de trabalho, nesse ambiente ainda hoje - e digo-o com muito apreço pêlos seus mestres - único, de recolhimento e de estado, que é o Instituto Jurídico da Faculdade de Direito de Coimbra, jovens para educar e formar, e livros, muitos livros, que ali, ontem como hoje, levam o que há de mais recente e actual no domínio da cultura jurídica e política.

«Às melhores revistas de todo o Mundo - espanholas, francesas, italianas, inglesas, americanas, alemos - estão ali para professores e alunos, e «as melhores colecções gerais, os maiores e maca completos tratados, as obras avulsas mais recentes, não faltam para satisfazer a curiosidade dos estudiosos» - como afirmou na sua Resposta.

Foi então que a sua inteligência invulgar, ia sua avidez de saber, a sua disciplina interior, o seu espírito metódico e a sua capacidade de reflexão se puderam inteiramente realizar, estudando e repensando o que os outros pensaram em relação a tudo que interessasse à sua cultura de sociólogo e humanista, e, sobretudo, reflectindo e reelaborando os próprios dados da sua experiência cultural e empírica - e, os mais próximos, não podiam deixar de ser os que lhe proporcionavam a vida política portuguesa de então. Buscar-lhes as causas, avaliar-lhes os efeitos, criticar-lhes os caminhos, ensaiar outras soluções, foi exercício a que se dedicou a sua inteligência, sem sentido ou fim imediato, apenas por puras razões especulativas de estudioso e mestre, mas, com certeza, incentivado também pelo profundo amor à sua pátria.

Quando, em 1928, foi chamado ao Governo, o modesto e quase desconhecido professor de Coimbra pôde dizer, por isso: «Sei muito bem o que quero e para onde vou.»

E, mais barde, explicaria: «E que me fui habilitando, lentamente, sem precipitações, quase sem dar por isso, liberto de qualquer ambição de ordem pessoal. E assim quando a minha intervenção na máquina do Estado pôde ser útil, ela foi aproveitada, talvez, como o não seria se eu tivesse improvisado uma cultura.»

Já vi escrito que toda a carreira de Salazar foi votada à satisfação de uma aspiração política.

Afirmação gratuita.

Nunca Salazar pensou no Poder, antes de este lhe haver sido confiado, sem que, paia tanto, conspirasse, chefiasse algum grupo ou vencesse adversários pela força ou pela intriga.

Como português inteligente e culto, não se podia alhear dos problemas do Poder; como professor, era seu dever estudar a organização política do Estado.

Há aqui, normalmente, um erro de perspectiva, qual é o de considerar apenas o professor de Finanças, esquecendo-se de que o fazia numa Faculdade de Direito, por onde foi formado, e que tis disciplinas que ensinava eram as Finanças Públicas, a Economia Política e o Direito

Fiscal, ciências que, por isso, não só têm por objecto certos aspectos da própria- organização jurídica do Estado, como também obrigam as seus cultores ao estudo das ciências afins, numa palavra, ao todo, político, social e jurídico do mesmo Estado.

O que se surpreende nos diversos momentos da sua vida pré-pública, em que saiu a terreiro, não é a aspiração do Poder, mas, sim, como já uma vez acentuou o Prof. Marcelo Caetano, uma extraordinária vocação política, o carisma do chefe político.

É essa vocação que se adivinha nas justas que uma por outra vez sustentou nesse período, nas quais, ou pôs à prova a sua capacidade de acção, ou expressou as suas ideias acerca da organização jurídica do Estado e dos seus fins.

A colaboração no Imparcial e as conferências que esporadicamente realizou são indispensáveis à crítica e conhecimento do seu pensamento político.

Mas, se aqui é, sem dúvida, um homem político que encontramos, isto é, um homem quê não pode deixar de sentir a sociedade que o rodeia, não é de modo nenhum o político, segundo o dicionário da época.

Tal actividade realiza-se como que à margem da política, e apenas ou para doutrinar a lição da Igreja ou para reivindicar para esta os direitos que, de facto, lhe eram negados. O ponto dominante é o seu catolicismo.

De qualquer modo, essa actividade não deixa de ser, para o pensador e intelectual puro, como que os exercícios práticos necessários, no domínio da acção e do concreto, ao seu futuro de condutor político.

E assim, quando Salazar chega ao Governo, não era apenas o técnico de finanças, como muitos julgaram e outros ainda pensam: com ele ia também o jurista e o sociólogo e, sobre tudo isso, o homem teorético por formação e temperamento, que, pois, não poderia deixar de ter em relação a essas ciências uma atitude filosófica, de as interrogar, quer na sua mútua compreensão, quer na sua relacionação com certas realidades que são objecto do seu conhecimento, do seu valor e da sua finalidade - o indivíduo só e na sociedade, as várias expressões desta, o Estrado, a sua ética e os seus fins.

Para muitas dessas interrogações, de resto, havia já formulado as respostas. Sabia bem o que queria e para onde ia.

E quem ler os célebres discursos proferidos na Sala do Risco, em 28 de Maio de 1980, e na Sala do Conselho de Estado, em 80 de Julho do mesmo ano, onde se encontra o travejamento mestre da doutrina política do Estado Novo, fica com a impressão de que as ideias ali expandidas brotam com tal espontaneidade, que logo se percebe não terem sido elaboradas na ocasião, mas antes terem vindo, de longe, a ser pacientemente tratadas e clarificadas no laboratório intelectual do seu autor: «Sou dos que têm meditado longamente os vários acidentes da vida pública portuguesa.»

São, afinal, ideias bem simples, que dão originalidade ao sistema político instituído com a Revolução Nacional.

Mas aí reside a dificuldade superada.

Na cultura, como na natureza, tudo o que é simples ou existe de mistura com outros elementos que lhe são contrários e que é preciso isolar ou envolto em jorras parasitárias que é mister remover.

E sempre aí esbarraram as grandes correntes do pensamento.

Dificuldade ainda, porque a partir do final da Grande Guerra, em 1918, o domínio das ideias e a teoria dos factos deixou de ter qualquer controle possível de enquadramento ou sistematização.