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29 DE JANEIRO DE 1985 1743

mãos, ainda que por via indirecta, foi eleito um novo Presidente. Com V. Ex.ª, hoje, nesta sua Casa, está, legitimamente, todo o povo brasileiro.
Parafraseando o Presidente António José de Almeida quando agradeceu ao Brasil o facto de se ter tornado independente, quase me apetece agradecer-lhe, Sr. Presidente Tancredo Neves, o facto de, com a sua eleição, o Brasil ter começado a ser de novo uma nação livre e democrática. É uma vitória que sentimos como nossa, porque, engrandecendo o Brasil nos engrandece, libertando-o torna mais forte a nossa própria liberdade, reaproximando-o de si mesmo, reaproxima-o também de nós.
Pertenço a uma geração que recorda ainda as horas dramáticas de 1964, quando os militares derrubaram as instituições legítimas para instaurarem um regime que, durante largo período, foi uma ditadura feroz e sangrenta. Não o esquecemos, como não esquecemos o 28 de Maio de 1926, que trouxe consigo uma ditadura de quase meio século. A memória avisa-nos: no Brasil e em Portugal a tentação militarista é sempre uma tentação liberticida. As ditaduras separam os povos. O militarismo nacionalista mutila as nações, apequena-as, depoja-as daquela parte de universalidade que cada uma tem em si. As ditaduras trocam retórica, mas não deixam os povos comunicar. Talvez por isso, o nosso Miguel Torga dizia em 1951, por ocasião de um almoço a José Lins do Rego:
Longe de nos aproximarem, as aproximações têm-nos separado. [...] Permutamos sono e salamaleques! Ora o Brasil autêntico é outro, e o Portugal autêntico é outro. [...] São dois países vivos, desiguais, independentes, só ligados por um pacto de inquetação e promissão que nenhum tratado deve codificar.
Como o nosso poeta, creio, Sr. Presidente, que os nossos países têm de redescobrir-se um ao outro. Só em liberdade o podem fazer, porque só a liberdade rima com autenticidade e amizade. De certo modo estamos a fazê-lo já, e a sua vinda a Portugal, Sr. Presidente, é um claro sinal de que o Brasil está de novo de coração aberto para os seus irmãos. Retivemos, sobretudo, a lição de maturidade cívica do povo brasileiro, lição essa que tinha sido dada também pelo povo português após a queda da ditadura em 25 de Abril de 1974. É a prova de que os nossos povos não precisam de tutores, sejam eles militares ou outros. A prova de como é ilusória e vã e quase sempre trágica a pretensão de qualquer instituição em sobrepor-se à vontade livre de um povo e arvorar-se em guardiã exclusiva da consciência nacional. A história de Portugal e do Brasil mostra como tutores e salvadores acabam sempre por transformar-se em opressores. Tanto maior é a honra daqueles militares que, fiéis ao espírito do 25 de Abril, souberam cumprir a sua palavra e devolver a soberania ao povo, no respeito desse princípio básico da democracia que é a subordinação do poder militar ao poder civil democraticamente constituído.
Os factores democráticos da formação das nossas nações (para empregar uma expressão cara a Jaime Cortesão, outro grande português enamorado do Brasil), bem como a matriz humanista da nossa cultura comum, são incompatíveis com a existência de regimes em que, em nome da consciência nacional, as consciências acabam sempre policiadas.
A palavra liberdade é santo e senha da língua portuguesa. Devemos despi-la de flores de retórica, como faria Graciliano Ramos, ou torná-la, à maneira de João Cabral de Melo Neto, uma faca só lâmina. Porque assim mais viva e mais autêntica. Quanto mais despojada, mais verdadeira. Depois da vitória de Tancredo Neves, as palavras, no português do Brasil, como diria Sophia de Mello Breyner, «Recuperam sua substância total» e, mais do que nunca, são «concretas como frutos, nítidas como pássaros».
Fiel de sua fisionomia própria, rico da sua pluralidade, que é um traço inconfundível da sua identidade e da sua cultura, o Brasil, sob a prudente e sábia orientação do Presidente Tancredo Neves, caminhará sem dúvida por uma via plenamente democrática. A quem, como eu, sempre defendeu para Portugal uma democracia sem peias nem tutelas, é particularmente grato saudar, em nome do Partido Socialista, o Presidente eleito que simboliza o regresso do Brasil a um processo democrático, pluralista e civilista. Pouco ou nada temos a ensinar. Cada povo tem de fazer o seu próprio caminho. Os nossos irmãos do Brasil sabem que liberdade também rima com dificuldade. Mas se de alguma coisa pode valer a nossa experiência, ela resume-se na convicção de que é mil vezes preferível suportar a dificuldade da democracia do que beneficiar da pretensa facilidade de qualquer ditadura. Esta é uma convicção profunda dos socialistas portugueses, numa época marcada por uma crise que não é só económica mas moral e em que as dúvidas e interrogações são mais do que as respostas. Acrescentarei ainda a convicção de que a tão necessária revolução moral não pode ser outra senão aquela que o recentemente falecido padre Manuel Antunes chamou na revolução da solidariedade». Numa tripla dimensão: solidariedade social, solidariedade nacional, solidariedade internacional.
A institucionalização da democracia é, em si mesma, um acto de cultura. E também um princípio de revolução moral. Ninguém tão apto para levá-la a cabo como o Presidente eleito Tancredo Neves, não só pela forma como tem sabido auscultar o querer do povo, como pela inteligência com que tem reunido os consensos e os apoios indispensáveis à mudança e à transição pacífica para um regime autenticamente democrático.
Ao Brasil e a Portugal, ainda que de forma diferente, novos e grandes desafios se colocam, nomeadamente o de afastar de vez fantasmas e tentações e o de imprimir à democracia uma dinâmica adaptada às realidades do nosso tempo, não permitindo que ela estiole num ritual vazio de conteúdo, fora da vida e divorciada da sociedade, sobretudo dos pobres, dos humildes, dos trabalhadores, para os quais a democracia moderna não pode ser um lugar de exílio mas tem de ser uma verdadeira pátria política, por todos quotidianamente vivida e participada. Não há salvação fora de democracia. Mas a democracia não se salva pelo recurso a soluções híbridas que inevitavelmente a desvirtuam. A democracia salva-se pela sua capacidade em se auto-renovar e encontrar soluções novas. Pela sua eficácia na eliminação de privilégios e na realização da justiça. Cada vez mais a democracia tem de ser sinónimo de honestidade, coragem, transparência, igualdade, patriotismo.
Nesta hora de alegria e de esperança, não podemos esquecer os que foram perseguidos, torturados, mortos, nem os que com alguns de nós partilharam os ca-