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4532 I SÉRIE - NÚMERO 91

O abandono do objectivo megalómano que visava a construção de uma sociedade «perfeita» - e definitiva
- na qual certamente apareceria o «homem novo» - significa também que se põe termo ao ciclo da resacralização do político que nos últimos séculos afectou boa parte da humanidade.
Importa recordar que nas sociedades primitivas e mesmo na antiguidade pré-cristã a política estava na esfera do sagrado. «Dar a César o que é de César e dar a Deus o que é de Deus» foi a proposta revolucionária que Cristo deixou aos homens. Ó dualismo cristão substituiu o monismo, rejeitando o culto do poder político e quebrando a unidade dos poderes político e religioso.
E sabido que posteriormente se verificou uma resacralização do poder político, quase sempre sem Deus. Primeiro foram os reis absolutos, depois o Estado, o partido, a vanguarda, que sucessivamente se julgaram detentores de toda a verdade. Sacralizou-se a História, atribuindo-lhe um destino: desembocar na sociedade perfeita, que permitiria ao homem salvar-se a si próprio e criar o homem novo. Foi a secularização da esperança milenarianista de Joaquim de Flora.
A História seria pois a «providência» que conduziria os homens na boa direcção até à «sociedade final», justa e racional. Karl Marx parece encarar a «Providência» não na razão mas na situação material dos homens, a partir da qual resultaria uma evolução com base «científica». A missão redentora caberia ao proletariado, que suprimiria as condições de existência do mal, as quais seriam puramente sociais. O socialismo atingiria uma sociedade final sem classes, igualitária, sem antagonismos, onde o desenvolvimento das forças produtivas aboliria a raridade e a necessidade, bem como o Estado e a política, tornados desnecessários. O divino morreria, mas o político tornar-se-ia, entretanto, sagrado.
Lenine atribuiu mais tarde o papel redentor ao partido de vanguarda do proletariado. Outros sacralizaram a raça, o Estado, a Nação. Mas todos pretenderam sacralizar o que é efémero criando verdadeiras religiões de substituição, com os seus ritos e dogmas. Por isso Domenach considerou o marxismo «combinação de racionalidade técnica com religiosidade arcaica».
Ora sempre que a política absorve a mística torna-se na pior das tiranias. Quem não partilha da verdade oficial não só está no erro como impede a construção do mito da sociedade perfeita e divinizada. Logo, deve ser perseguido. É que quando uma ideologia política se julga científica e sagrada, julga possuir ao mesmo tempo a verdade lógica da matemática e a verdade ontológica do real, todo e qualquer obstáculo ou contradição deve ser eliminado. Daqui resulta a diferença maniqueia entre os «bons progressistas» e os «maus reaccionários».
A realidade encarregou-se de desmentir a evolução prevista e as promessas que continha. Os sonhos messiânicos e a sacralização da História perderam crédito, pois conduziram os homens não ao paraíso na terra mas ao inferno da tirania e da pobreza, ao domínio da corrupção e da mentira.
Pelo contrário em democracia em não existe uma só verdade política - logo não podem as várias opções políticas ser sagradas. Quanto muito, se nela há alguma coisa de sagrado é, como diz Edgard Morin, o jogo, as regras que permitem a alternância das sucessivas vontades maioritárias de acordo com a evolução da
vontade popular. Para além disso, a democracia só pode ter como sagrada a pessoa humana, a sua dignidade e os seus direitos, que são anteriores ao Estado e que, logo, são intocáveis e devem ser reconhecidos e protegidos.
Ao eliminar os dogmas e objectivos constantes da Constituição, nomeadamente dos artigos 1.º e 2.º («sociedade sem classes», «transição para o socialismo»), a Lei de Revisão submeteu o Estado e a política ao primado da pessoa humana e da sua vontade, dessacralizando-os. Esta é a razão, mais funda dos protestos dos que, como o PCP, sentem esta revisão como sendo um «sacrilégio» por estarem ainda mergulhados na fase ultrapassada da evolução humana em que as ideologias tinham uma força «sagrada» e conduziam aos «amanhãs que cantam», às sociedades terminais.
Pelo contrário, há já um século Eduard Bernstein afirmava que «o objectivo é nada, o movimento é tudo». Reconhecia assim os limites da acção política, que no nosso século de novo se dessacralizou, deixando de visar pretensos, inexistentes e impossíveis «objectivos finais», para ter em vista simplesmente a promoção da pessoa humana, a realização do bem comum, material e espiritual, e das condições da «bona vita», isto é, da vida conforme à natureza humana.
A nossa Constituição, passando a ter pretensões mais modestas, passa a poder dar resposta às reais aspirações e desejos, à vontade dos portugueses - e essa é uma viragem que tem de ser devidamente assinalada e considerada extraordinariamente positiva.
6 - A questão axiológica, a derrota do positivismo e o possível renascimento da filosofia política
Para realizar as exigências da natureza humana a política tem de ser balizada por valores e princípios éticos. A consagração no artigo 1.º (como já sucedia nas Constituições de vários países democráticos) dos valores que orientam o caminho da comunidade política - a liberdade, a justiça, a solidariedade - além do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado, apontam para a importância crucial das questões axiológica e ética e rejeitam a redução política a uma questão meramente técnica (técnico-jurídica ou técnico-económica): a boa construção e funcionamento das instituições e da economia.
Penso, por consequência, que também o positivismo e o pragmatismo tecnocrático vêem postas em causa as posições dominantes que tiveram em Portugal. É certo que a Constituição contém ainda inúmeros preceitos recheados de mitos tecnocráticos e positivistas que consubstanciam esta ideologias. No entanto, os princípios fundamentais aprovados obrigam a interpretá-los à luz do primado da pessoa e dos valores consagrados no artigo 1.º
Entendo que, deste modo, não será possível continuar a considerar em Portugal a política apenas como ciência, conjunto de princípios estabelecidos e verificados «cientificamente» por homens competentes. Os juízos de valor que, quer o positivismo, quer a ideologia tecnocrática desprezam, são essenciais para fundamentar a acção política e exigem o renascimento do pensamento político.
Foi o positivismo que conduziu a política a um impasse: a sua pretensa neutralidade axiológica, a sua análise redutora não lhe permitem compreender toda a realidade. Como bem notou Francisco Sarafield Cabral,