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5128 I SÉRIE - NÚMERO 105

são as de todos os homens com fome e sede de justiça. De todos os homens que se recusam a apoiar a tirania sobre seus irmãos mas se recusam, também, a ser vitimas dessa mesma tirania.
Revolução feita por homens e para homens, pelo povo anónimo que salta as barreiras, sem muito bem saber para onde vai, mas disposto a não voltar atrás, e incapaz de ajoelhar seja diante de quem for, homens ou deuses. Foi feita por homens: não é uma revolução para os deuses nem para os anjos; é para quantos têm fome e sede de justiça, não uma fome de retórica, mas a fome que se sente no seu ventre e no ventre dos seus filhos.
É uma revolução que marcou uma época e constitui viragem na história, tornada necessária por aquele classismo profundo aculturado durante séculos numa sociedade chamada cristã e que, nos seus privilégios e títulos, de nascimento uns e conquistados a fio de espada ou por astúcia os outros, consagrara essa mesma exploração do homem pelo homem, indo até à escravidão. Havia homens que, para outros seus irmãos homens, não passavam de animais de carga e como recompensa se lhes punha na mira, para além da vida, o céu que não viam. À vista, apenas a servidão.
A Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade para os homens, para todos os homens, pregadas no meio revolucionário e apregoadas até quando muitos iam para a guilhotina e outros iam de armas na mão para as fronteiras, mais não são do que o eco firme do «Sermão da Montanha», a mais de 1789 anos de distância. Para uns, exploradores das doutrinas e dos homens, «As bem-aventuranças» virão na outra vida que não sabemos se existe, para os revolucionários, «As bem-aventuranças» têm de ser conquistadas na vida que conhecemos, para nós e para os nossos filhos, na nossa vida. Importa vivê-la como cidadãos de pleno direito e não como senhores, alguns tolerados e exploradores os outros.
Celebramos a Revolução Francesa de há dois séculos, inteiramente viva nos seus objectivos e nos seus processos democráticos, embora de permeio tenha havido chacinas de arrepiar e tiranias sem conta. O mesmo povo de Paris que hoje vive em delírio a sua festa, já mais de uma vez e de duas viu passar essa mesma festa, este carismático 14 de Julho, sob o calcanhar do ocupante e com o canhão do inimigo de todas as liberdades, até a do direito à vida, a ameaçar tudo subverter: as nações, os direitos, o próprio homem.
Saudamos a Revolução Francesa a dois séculos de distância porque ela continua a ser a fonte inspiradora de todas as revoluções e movimentos em prol da valorização do homem, indo sempre além de quantas peias e compromissos íntimos ou de fora o prendam, o dominem e, as vezes, até o escravizem com preconceitos da mesma sociedade classista empenhada sempre em negar a muitos a igualdade de oportunidades.
Celebramos a Revolução Francesa. O que se passava em Portugal nesse mesmo ano de 1789? Quem tudo mandava era o intendente Pina Manique, facto um de uma sociedade com uma rainha que daria em doida. Pina Manique e suas moscas tudo vigiam, as palavras e os passos de uma sociedade que querem imóvel. Mas não há nada, absolutamente nada imóvel. Ou se avança para a renovação ou se corrói e deteriora para a destruição. Em Portugal, trava-se uma polémica entre dois juristas. Discute-se o novo Código de Direito Público e Pascoal José de Melo Freire defende que todas as leis devem sair em nome do Rei; António Ribeiro dos Santos é partidário de que elas sejam promulgadas em nome do Reino.
Como se vê era a origem do poder que se discutia a alto nível, também em Portugal, como se discutiria em todas as crises dinásticas. Estava limpidamente posta já alguns séculos atrás, por aquelas gentes que, na Cortes de Coimbra de 1385, diziam ser elas mesmas, o Povo, vindo daqui e de além, de Entre Douro e Minho, de Trás-os-Montes e Beiras até ao Algarve, a fonte, a nascente desse mesmo poder. Por isso se dirigiam ao Mestre de Avis «e o autorizamos a que se chame Rei».
É simples o povo, mas nos Estados Gerais tem de fazer valer os seus direitos. Tem de os ir buscar muito longe porque séculos e séculos de monarquia absoluta, de unicidade política ou religiosa, tinham ido acumulando privilégios e riquezas só para alguns. Em todas as épocas em que não há evolução, se impõe a revolução. E aí temos os assaltos, as chacinas, a guilhotina a matraquear, atirando para os cestos com as cabeças de reis, de rainhas, de abades mitrados, de ministros, de homens todos implantes e poderosos dias antes.
Nessas viragens da História, nas lutas do Papado e do Império, nas da Reforma, como nas da Revolução Francesa, é impressionante o número de cabeças que rolam, os poderosos que são apeados e os desconhecidos que vem à superfície e se tornam marcos da história. E um frade Agostinho, como Lutero, na Reforma, e um magistrado anónimo chamado Robespierre, na Revolução Francesa, será um conspirador proscrito no estrangeiro chamado Lenine, dois séculos depois. Corre o sangue, sem dúvida, somente se esquece quase sempre quantos direitos tinham sido abafados, quantos e quantos homens tinham sido silenciados, estrangulando inúmeras vezes e por isso quase sempre no silêncio cúmplice de políticas, ministros, servidores obedientes e complacentes e as bênçãos acomodatícias, santificadoras de quanto pudesse estar errado.
A Revolução é quase sempre uma festa, mas os tempos que se seguem é que o não são se se quiser que o espírito da revolução vingue e a mentalidade das gentes mude, que não apenas os homens. Muitos dos que tornaram essa mesma revolução necessária são os primeiros a tornarem-se em arautos de mudança. Eles recompõem-se ao primeiro choque sofrido e ei-los na crista da onda.
Foi uma festa o 14 de Julho e as Tulherias vieram a terra esborralhadas, como símbolo de todas as prisões, mas impérios se viriam a sobrepor, reis foram coroados e mais de uma vez a República foi esganada. E já houve até dias em que o 14 de Julho era quase festa clandestina nessa Paris, hoje toda embandeirada. É que a ideia da República vingou na alma do povo. Resistiu a guerras e conjuras, a traições também. Algumas vezes, na França e noutras Repúblicas, tudo pareceu afundar-se e uma «Viva» à República levava à esquadra mais próxima.
A República tem sobrevivido e, mais do que a República, a mentalidade republicana que enforma até regimes monárquicos. Não deixemos de assinalar que as maiores crises sobrevêm quase sempre àqueles períodos em que ao povo rasteiro se sobrepõem os heróis, sejam eles príncipes os plebeus, paianos ou eclesiásticos, militares ou juristas. Eles curam quase sempre mais da sua glória, do seu poder e nome do que dos interesses reais do povo.