6 DE DEZEMBRO DE 1989 769
que as ideologias historicistas atribuíram um papel redentor à história, que conduziria fatalmente os homens à sociedade justa e racional.
Como se sabe, Marx pôs o acento na evolução das estruturas económicas e atribuiu o papel redentor ao proletariado. Ele seria o motor de uma evolução imparável que conduziria a uma sociedade final sem classes.
Lenine, mais tarde, atribuiu o papel redentor ao partido de vanguarda do proletariado.
Em qualquer caso, a ideologia tornou-se uma verdadeira religião de substituição, com os seus dogmas, os seus ritos, os seus «santos», apropriando-se do sagrado e pretendendo ocupar-se mesmo da essência da pessoa humana. Do dogmatismo doutrinário passou-se a um verdadeiro ritualismo religioso, como bem explica Edgar Morin.
Já Dostoievski, aliás, tinha prevenido que «o socialismo tenderia a ser Deus, visto de outro ângulo».
Domenach caracteriza hoje estes regimes ou o marxismo em geral - é sua a expressão - como «uma combinação de racionalidade técnica com uma religiosidade arcaica».
O resultado foi o carácter ditatorial e policial do sistema político. Quando uma ideologia se julga científica e sagrada, julga possuir toda a verdade, quer a verdade lógica da matemática, quer a verdade ontológica do real, todo aquele que se afasta dela está forçosamente no erro e é um entrave à construção da sociedade perfeita, logo deve ser perseguido e eliminado.
As ideologias que se opõem à única verdadeira são inúteis e são falsas, portanto, devem ser proibidas. Não pode haver liberdade de escolha, não tem sentido, a alternância também não o tem. Os opositores são traidores e devem ser punidos, uma vez que estão contra a verdade.
Esta lógica pseudo-religiosa exige o conformismo não criativo, nem inovador, tanto mais que uma classe burocrática se encarregou de zelar pela ortodoxia. Não é, obviamente, este o momento de referir como aparece e se caracterize o fenómeno burocrático, porque é, fatalmente, imobilista e rígido, nem de demonstrar o resultado lógico, aliás bem patente da dominação da classe burocrática.
Também a apropriação colectiva dos meios de produção, factor de irracionalidade, atraso e decadência, que forneceu ao poder meios de intimidação sem limites, é uma das causas daquilo que se está a passar no Leste.
Só é pena que se tenha tentado também amarrar Portugal a este dogma da apropriação colectiva e a este modelo económico colectivista que só há poucos meses (pasme-se!) foi possível pôr em causa através da revisão constitucional. Há que perguntar a todas as forças presentes nesta Câmara por que razão isso só foi possível tão tarde. Façam um exame de consciência!
O carácter regressivo e antipopular dos regimes do Leste, resultou, assim, da oposição à inovação, sempre contrária ao dogma, da falta de mecanismos de substituição da classe dirigente e da concentração de poderes numa classe, num pequeno grupo dirigente e, por vezes, num só homem que foi quase divinizado (Estaline, Ceausescu, Mão e Kim II Sun, este até com a peculiaridade de restaurar a hereditariedade.
O sistema no Leste falhou por se ter transviado no que é essencial, substituindo pretensos objectivos finais, ao objectivo da política - a promoção do homem, a realização do bem comum e das condições da vida, conforme à natureza e às aspirações humanas.
Foi por não criar essas condições, de acordo com as aspirações humanas, que foi rejeitado (é quase a história do ovo de Colombo, mas é tão simples como isto!).
E foi esta evidente incapacidade de dar resposta às aspirações materiais e espirituais da maioria da população a uma vida melhor, mais digna, mais livre e criativa que levou à sublevação geral a que assistimos hoje.
Quem pode, agora, perante tudo o que se passou, negar a falência do sistema e, mais, da ideologia que o suportou durante décadas.
Eduardo Lourenço, que será certamente insuspeito, declarou, há pouco tempo, com razão, que «se há um triunfo teórico de alguém, é o de Bernstein sobre Lenine».
A plena aceitação da democracia, único sistema capaz de abrir caminho para uma sociedade mais justa, a defesa de igualdade de oportunidades, o reformismo continuado, de acordo com a vontade popular, a consciência de que não há nem pode haver sociedades finais («O movimento é tudo, o fim é nada»), aí estão para revelar o seu génio de precursor.
Com efeito, como já Tocqueville, há muito, dizia, a indeterminação é uma característica essencial da democracia, que é a sociedade histórica por excelência, porque acolhe e preserva a indeterminação, em contraste com o totalitarismo que pretende deter a lei da sua própria organização, do seu desenvolvimento e da própria finalidade do homem.
Também o Papa apontou no mesmo sentido, há um ano, no Parlamento Europeu, quando afirmou que «a sociedade, o Estado, o poder político, pertencem e pertencerão sempre ao quadro mutável e sempre aperfeiçoável deste mundo [...]. Os messianismos políticos desembocam sempre nas piores tiranias».
No universo político não pode haver uma só fonte de verdade. A democracia funda-se sempre na contraposição, na fecundidade dos antagonismos, na expressão essencial das correntes opostas e na protecção da diversidade, das diferenças e das minorias.
Não tem sentido falar de uma ideologia verdadeira ou de uma ideologia científica. Trata-se de uma impossibilidade lógica e de uma contradição nos termos. Ciência e ideologia são realidades qualitativamente diversas, que se movem em planos distintos.
A democracia, ao contrário dos sistemas totalitários, caracteriza-se pelo reconhecimento de que há várias ideologias possíveis. Não vou entrar, porque não tenho tempo, na querela do pretenso fim das ideologias. Quero só dizer que o chamado «apaziguamento ideológico» é outra coisa que radica no facto de haver, nas sociedades democráticas ocidentais, uma parte ou um tronco comum nas ideologias e, depois, uma pane variável, se quiserem.
A democracia triunfou também porque reconhece os conflitos que resultam da multiplicidade das ideologias e permite a sua resolução num quadro institucional, aceite pelos diversos parceiros sociais, como já Dahrendorf notou há tempos.
Mas não é apenas por conseguir gerir as lutas de classes e de interesses, delas retirando o progresso e a mobilidade social, que a democracia é um sistema superior.
Esta superioridade vem da não confusão entre as esferas do sagrado e da política. Para ela só a pessoa humana, a sua dignidade e os seus direitos é que são sagrados. Quando muito, poderia seguir Edgar Morin, quando diz que «as regras do jogo permitem a alternância democrática, a alternância das sucessivas vontades maioritárias, e, nessa medida, também podem ser consideradas sagradas».