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10 DE MARÇO DE 1993 1617

O Orador: -Não é preciso ir ao outro lado do mundo, esse espaço asiático onde os direitos do homem ainda não ganharam raiz; nem tão-pouco aonde o Corão continua a situar a mulher sete passos atrás do homem, quando não objecto tão exclusivo do pai ou do marido que nenhum outro homem lhe pode ver o rosto; nem sequer à África negra, onde a mulher é com naturalidade negócio de compra e venda; nem aos confins do passado, onde a mulher foi objecto das mais aviltantes sujeições. A história do pensamento e da civilização não foi exaltante ao ponto de não ter pactuado com a escravatura até há pouco mais de um século -com Aristóteles e o próprio S. Tomás de Aquino a doutamente justificá-la-, de não continuar a pactuar com o trabalho forçado, seu prolongamento natural, e de não permanecer agarrada a métodos discriminatórios entre seres que, não obstante, proclama na sua essência iguais.
Basta-nos uma mirada para o mundo pretensamente civilizado em que nos inserimos, o aqui e agora de que fazemos parte, para não podermos ignorar que a igualdade jurídica entre o homem e a mulher coabita vergonhosamente com a desigualdade social, económica e cultural.
É certo que Já estamos longe das ignomínias do passado. Mas que isso nos não amoleça para a necessidade de completarmos a tarefa de banir da nossa responsabilidade e do nosso descontentamento as discriminações com base no sexo que chocante mente persistem.
Estão aí as estatísticas (ainda há pouco a Sr.ª Deputada referiu bastantes) e, mais do que elas, a realidade. Na política, na administração, no trabalho remunerado ou doméstico, continua a ser chocante o fosso que separa o homem da mulher. Na sociedade conjugal, só agora começa a insinuar-se, deixando a descoberto manchas do passado, uma equitativa distribuição de direitos e sujeições. De dignidade, em suma. Nas relações conjugais e extraconjugais, entre os pais e as mães, é à mãe que socialmente cabem - num como que prolongamento das sujeições naturais - os constrangimentos maiores.
E as diferenças biológicas e físicas continuam a determinar violências mais frequentemente do que inspiram poemas. A figura da «Luísa que sobe a calçada», do conhecido poema de Gedeão, não saltou da ficção, saiu da vida.

Aplausos do PS e do PSD.

E não tivemos, ainda há dias, que indignar-nos aqui contra a violação massiva de mulheres com desígnios de limpeza étnica, que ocorre na antiga Jugoslávia? Esse requinte escapou ao próprio Miller!
Acuso-me pois de quê? Da pontualidade e da escassez global das minhas indignações e dos meus protestos. Dos intervalos da minha luta. Não me indignei em todas as horas da vida ou da alma, nem fiz do protesto contra o que sobeja da velha ignomínia uma constante da minha vida. Pactuei. Resignei-me. Beneficiei, por vezes com deleite, de privilégios que não combati. Este mesmo peccavi não me garante que amanhã não regressarei à desatenção, à rotina, ao conformismo, a todos os pactos com práticas e valores com ressaibos marialvistas implícitos na globalidade do meu comportamento.
Ao inspirar a revisão legislativa subsequente à Constituição de Abril ficaram feitas todas as leis possíveis contribuintes para a não discriminação baseada no sexo?
Ao intervir nesta Assembleia e fora dela, disse e escrevi tudo quanto podia ter dito e escrito com o mesmo objectivo?
Enquanto Ministro, que também fui, pus ao serviço do poder de que dispus a vontade política de assegurar tratamento igual ao que sempre considerei igual?
No meu comportamento diário, mesmo aquele que já beneficiou da experiência e da sensatez da muita idade, nunca me deixei trair por concepções de maniqueísmo sexista?
As respostas não me absolvem. Subsiste, viva, a necessidade de um salutar perdão.
O problema é de raiz cultural. Se não fora, bastaria a lei. Sendo, apenas ajuda.
Tudo terá começado na diferenciação biológica. O poder nasceu causalmente ligado à força e o homem é de sua natureza fisicamente mais forte.
Do poder saiu a lei. Moral ou outra. E a lei reflectiu - e assim continua - a supremacia do legislador masculino.
A própria ideia de pecado nasce do sexo feminino. É Eva quem dá a comer a Adão o fruto proibido da árvore da ciência.
Discriminatório é também o juízo do pai celeste: ao homem o trabalho, à mulher o parto. Pena desigual, como logo bem se vê. Até porque a mulher compartilha com o homem o suor do trabalho, sem que o homem divida com ela as dores do parto.
Como mandatária da serpente, a mulher ficou para sempre ligada às tentações do Mafarrico.
Fraca, nessa medida, e maléfica, a (mulher) fêmea foi presa fácil do macho. Igual, nem na escravatura, visto que linha por missão, entre outras, a de que gerar riqueza, ou seja, escravos.
O despontar do direito natural, como atributo da pessoa, é o primeiro farol. Cristo, já o disse, deu uma preciosa ajuda. Não foi o Sermão da Montanha a primeira Declaração Universal de Direitos, ali chamados bem aventuranças? Mas nasceu antecipado em relação ao seu tempo e não pôde incluir mulheres entre os Apóstolos. Decerto, por isso, ainda hoje a sua Igreja não reconhece à mulher assento nos mais ínfimos degraus da hierarquia religiosa ou do cerimonial litúrgico. Recuso-me, aliás, a compreender o bem fundado da leitura fora de época da Epístola de S. Paulo aos Coríntios, na parte em que preconiza a sujeição da mulher, como tema de meditação e de fé. E porque a Igreja dominou a cultura da Idade Média, não se há-de estranhar que só na Idade Moderna, com a supremacia da razão, se tenham atingido estádios menos humilhantes de discriminação sexista.
Modernamente, a nova «religião» dos direitos humanos, de validade pretensamente universal - depois de, durante milénios, termos pactuado com cartilhas de só deveres - encontrou em René Cassin o seu profeta. Nasceu com a mesma fragilidade com que nascem as utopias. Mas fez caminho, porque era tempo dela, e tem hoje mais força do que um arsenal atómico. Já derrubou ditaduras e ditadores. Põe o dedo no nariz aos novos aprendizes dessa feitiçaria.
Está positivamente obrigando o mundo a ser mais justo, mais igual, menos discriminatório. A terra de promissão de uma civilização planetária onde o homem e a mulher sejam jurídica, económica, social e culturalmente iguais já se desenha no futuro. Os lapidadores de adúlteras já jogaram fora a pedra.