1896 I SÉRIE - NÚMERO 56
reforma, assenta primordialmente nos professores como agentes que, no terreno, os vão consubstanciar.
Qualquer reforma teorética não passa de um vão filosofar, transformando-se, primeiro, num barulho de arruaça para, depois, confinar a um monólogo institucional sem sentido ou justificação.
Por um lado, quando se pretende lançar uma reforma de ensino, seja ela pobremente direccionada ao uso das práticas pedagógicas ou mais ambiciosa, quando cuida e acautela em seus pressupostos reflexos sociais, não nos parece possível fazê-la, com o mínimo de possibilidade de êxito, sem isolarmos os elementos constituintes, a fim de os estudar na sua essência. Porém, ainda que, convenhamos, não possamos isolá-los com o rigor matemático, dadas as inúmeras variáveis que se integram no processo - pais, alunos, meio, situações sócio-económicas, usos, costumes, clima, transformações sociais inesperadas e professores -, este último elemento deverá ser sempre tratado isoladamente e com a maior das atenções. Passa, pois, por este entendimento que a preparação dos professores é de maior e prioritária importância em toda esta complexidade.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Preparar um professor para uma docência consciente e responsável foi, e ainda continua a ser em muitíssimas ocasiões, apetrechá-lo com um saber curricular universitário. Depois lançam-se estes licenciados na dura seara da educação sem, primeiro, lhes ter afeiçoado o gesto para a ceifa e lhes ter ensinado a manobrar a foice. Sem saberem o que fazer, limitam-se a despejar conhecimentos sobre os seus alunos, preocupados, tão-somente, em transformá-los em repetidores de repetidores. Quanto mais papagaios, melhores alunos!
O Sr. Silva Marques (PSD): - Muito bem!
O Orador: - Os professores mais atentos lá vão, angustiosamente, imitando os seus antigos professores e raros serão aqueles que se interrogam sobre se poderá, ou deverá, ser de outra maneira. Bom professor é aquele que exige muita memória, que sua muito, que reprova mais ou que, como no caso dos professores do ex-ensino primário, trabalha de sol a sol. Dedicação, improvisação e suor, eis as características dos professores que nos antecederam ou que não têm preparação em ciências da educação.
Com o aparecimento das ciências da educação houve, à sua roda, um misto de descrédito organizado e uma camuflada ironia quanto aos seus recursos e valores. Pouco a pouco, num peregrinar custoso, começou a entender-se que, afinal, a filosofia da educação, a história da educação, a sociologia escolar, as metodologias, as processologias, as didácticas, existiam e eram a bagagem especializada dos professores. Eram as ferramentas da docência e não podia ensinar-se só pelo facto de se saber muito. Talvez valesse a pena saber menos um pouco e ensinar mais e melhor.
No entanto, temos de fazer justiça às universidades e institutos, ou centros de formação dos professores, que encetaram, contra ventos e marés, a incompreendida tarefa de licenciaturas em ensino.
O caminho percorrido não foi fácil, nem facilitado. De imediato, surgiram algumas imitações, não por obediência aos valores em jogo mas levados pelo pragmatismo das colocações dos professores. Os que eram licenciados em ensino saíam profissionalizados e os outros eram apenas licenciados mas não profissionalizados.
O passo das licenciaturas em ensino foi grande; no entanto, quanto a nós, não chega ainda para a caminhada, que é longa, áspera e íngreme. A preparação dos professores passa, como ficou sobejamente demonstrado, pela união científica entre três componentes: ciências da educação, currículo universitário e vocação. Esta última componente tem de ser encontrada pelo despiste vocacional, que terá de ser feito com o pré-requisito aos candidatos a professores.
Implica este pressuposto ter de tocar no acesso ao ensino superior, que se tem caracterizado por ser uma selva, onde «reina a lei do mais forte» em médias t onde as vocações são partes não chamadas a seleccionar. No caso dos professores e em outros casos, certamente, não pode ser assim. Um candidato pode ser, ou vir a ser, um grande investigador, um grande e emérito médico, mas não ter o mínimo de qualidade para ser professor.
O Sr. Silva Marques (PSD): - Muito bem!
O Orador: - A docência não pode continuar a ser a sexta preferência no ingresso ao ensino superior.
O Sr. Silva Marques (PSD): - Muito bem!
O Orador: - Pergunta-se: por que razão a docência não se impõe aos jovens deste país? Explicitando melhor por que razão os jovens deste país não querem ser professores? A resposta parece ser unânime quando se lhes pergunta: porque a docência é penosa e pouco rendosa.
Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados: Ensinar não pode continuar a ser transferir conhecimentos dos livros para a cabeça dos alunos ou, como diz Paulo Freire, «transformar as cabeças dos alunos em autênticas contas à ordem». Tem de ser muito mais do que isso. Já é hoje muito mais, só que a parte invisível esconde-se em mantos diáfanos que os leigos não conseguem ver, apesar da opacidade não ser assim tão densa.
Ensinar é também socializar, criar ambiência para o despertar de potencialidades, de socialização, de laços de amizade que perduram para lá das idades juvenis. À actividade de ensinar não é calculada com qualquer fórmula matemática ou algo que espere de uma reacção química. Quem nos dera a nós que assim fosse, porque seria fácil formar professores - experimentávamo-los em laboratório e, depois, deixávamo-los produzir obra igual ao experimento.
É porque está investida na docência tanta complexidade derivada dos elementos em jogo que a juventude de Portugal teme ser professor. Escolhem outras actividades menos complexas e quase sempre melhor remuneradas. Este painel, ora traçado, está carregado de tintas escuras, mas reflecte a verdade dos factos, o que é inquestionável.
Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados: A formação de professores tem, pois, de constituir a primeiríssima preocupação para todos nós. Temos longamente pensado nesta problemática e assistido com alguma angústia ao desinteresse pela causa. A educação não pertence ao Ministério da Educação, muito menos a qualquer ministro ou secretário de Estado; pertence aos pais que a pagam, aos professores que a ministram, aos alunos que a recebem e à sociedade que espera dela o que deve esperar-cidadãos de corpo e alma.
Mas qual a solução para debelar tanta maleita? Em nosso entender, será espalharmos por estabelecimentos de ensino superior cursos que, sem serem vocacionados para a docência, acabem fatalmente por vir desaguar nela.
Estamos a sustentar esses cursos e estabelecimentos de ensino superior com um fatalismo atávico. Vejo algumas faculdades a leccionar Filosofia, História, Geografia, Português, Línguas e Literaturas Modernas, Matemática, Biologia, Geologia, etc., não numa perspectiva de habilitação para o exercício de uma profissão liberal, mas numa perspectiva de licenciatura em ensino. Mas será esta a via correcta para a formação de professores? Onde estão as outras duas componentes: ciências de educação e vocação?