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28 DE OUTUBRO DE 1993 101

bendo-os na teia das relações sociais, aprofundam a personalidade e mudam o curso dos acontecimentos e da própria História.
José de Azeredo Perdigão, pela firmeza do seu carácter forjado em mil tentações vencidas, pela coerência que manteve no seu agir e em relação aos valores em que acreditou, pertence indubitavelmente a esta segunda categoria
Não faremos jus à sua personalidade e à sua obra se, por razões de retórica mal entendida, usarmos a seu respeito o arquétipo do herói indefectível de Carlyle. Pelo contrário, só exaltaremos a sua personalidade de excepcional relevo se o virmos, na sua natureza verdadeiramente humana, sujeito às fraquezas e aos pequenos defeitos que são nota do nosso ser desfalecente, mas capaz pela constância da vontade e pela convicção dos valores que defendeu de se superar e de se erguer muito acima do comum. Azeredo Perdigão foi grande, é grande na nossa memória, porque soube ultrapassar as pequenas fraquezas e imperfeições e perseverar nos grandes desígnios, alcançando finalmente muito do que se propôs.
Tive o privilégio de conhecer e privar com Azeredo Perdigão - embora numa fase já adiantada da sua existência, dada a diferença de idades - primeiro, no Banco de Portugal, onde, como membro da Administração, beneficiei da experiência e saber do grande jurista e advogado que era o Presidente do Conselho de Auditoria; depois, como amigo respeitado e querido, na intimidade das nossas casas e das nossas famílias.
Dele, como Presidente da maior Fundação portuguesa, recebi preciosos conselhos e generosa cooperação e apoio quando me iniciei nas completas e, às vezes, arriscadas tarefas de dirigir uma instituição congénere, embora muito mais modesta. Ouvi, em momentos de provação, o refrigério de uma palavra, trazendo o consolo da compreensão e da solidariedade.
Por tudo isto, gostaria de muito dizer e muito intensamente sobre a figura que hoje a Assembleia da República homenageia. Razões de tempo, porém, forçam-me a dar um testemunho conciso, relevando, apenas, o que considero essencial ou o que mais me impressionou no seu carácter e sacrificando muito do importante, mas que outros, melhor do que eu, já tiveram ocasião de lembrar.
Azeredo Perdigão foi um democrata, um convicto liberal, um jurista competentíssimo que se guiou pelos valores da Justiça e sempre defendeu o sentido ético da profissão de advogado, um institucionalista praticante no domínio sócio-político. Foi também um homem culto, crente em Deus que sempre proeurou agir em concordância com a sua concepção da vida e do mundo.
A multiplicidade de sentidos e conceitos, que algumas destas qualificações exprimem, impõe uma explanação que evite ambiguidades e precise o pensamento.
Azeredo Perdigão entendia convictamente que o exercício do poder, que rege e conforma as sociedades, recebe a sua legitimidade da vontade livre dos homens que constituem a comunidade e que são, em definitivo, os seus titulares. A sua participação na «Seara Nova» atesta que as suas preocupações e opções filosófico-políticas se afirmaram desde cedo. Mas a forma como entendeu a vida política evidenciou-se menos por um desejo de participação activa e pela importância atribuída às formas de governo - relevância que, todavia, certamente não enjeitou -, do que pela percepção global e maneira de encarar as questões da rés publica e pelo mérito que atribuía aos seus responsáveis, em particular na atitude que assumia perante o Estado e o Governo.
O seu realismo permitiu-lhe distinguir o fundamental do contingente e a defesa do que considerou essencial forçou-o na praxis ao compromisso de escolher os campos de luta onde melhor poderia fazer prevalecer os valores superiores em que acreditava. Nunca esqueceu, porém, os vícios redibitórios ou aparentes das fórmulas políticas que menosprezam a democracia, e, após o 25 de Abril, apesar das múltiplas fadigas e corveias do seu cargo de Presidente da Gulbenkian, aceitou o mandato de Conselheiro de Estado, pelo tempo em que julgou poder prestar um serviço útil à República.
O causídico brilhante, que muitos já recordaram e cujas peças processuais, oratória forense e escritos doutrinais marcaram uma época na advocacia portuguesa, amava o Direito e a sua primeira profissão. Quando impedido de exercer a advocacia pela opção que tomara de se dedicar em exclusivo à grande tarefa da segunda parte da sua vida, continuou a pautar as suas decisões pela justiça, agora sobretudo distributiva, visto que a Fundação Gulbenkian se tornou com efeito, para além de uma das mais importantes promotoras de cultura no nosso país, um fautor revelantíssimo da redistribuição de bens e oportunidades aos intelectualmente dotados, mas desprovidos de património.
Não me atardarei na sua figura de grande jurista senão para sublinhar ainda que a sua formação de advogado afeiçoou, com particular vigor, o seu modo de ser liberal.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: O liberalismo de Azeredo Perdigão é, porventura, uma das notas mais relevantes do seu carácter, vista na dimensão do Homem com intervenção na vida pública. É nessa faceta que o seu sentir democrático se vivifica e melhor se revela. Tem também aí origem o que designei pelo seu institucionalismo.
O Presidente da Fundação Gulbenkian acreditava firmemente nas virtualidades criadoras da sociedade civil - no sentido em que a palavra foi cunhada por Ferguson e, sobretudo, reinventada e divulgada por Hegel-, na sua capacidade de garantir ao homem espaços de liberdade e de lhe oferecer ocasião de desenvolver os seus talentos. Respeitava o Estado e o poder político como entidades necessárias e com um papel importante. Mas, quase por instinto, prevenção natural que a experiência foi confirmando, temia que, quando não fossem tomadas as precauções e distanciamentos necessários, as sementes de degenerescência demoníaca que o poder sempre encerra se viessem a reactivar.
Em Portugal, país em que o predomínio do político nunca permitiu estruturar com solidez o dualismo Sociedade-Estado e fortalecer a autonomia do social, a prudência e cautelas que tomou eram, porventura, ainda mais justificadas.
A forma como Azeredo Perdigão corporizou e fez frutificar a ideia de Calouste Gulbenkian, a grande Fundação que hoje conhecemos, exemplificou, a par da sua fina sensibilidade e cultura, este sentir face ao político. Constituiu também um paradigma, antes e depois do 25 de Abril, de como se garante a liberdade institucional - antepara necessária da liberdade individual -, não só contra as grandes agressões do autoritarismo corporativo ou do colectivismo marxista-leninista, mas também face aos pequenos estratagemas ardilosos do dia-a-dia. Evidencia como se pode cooperar, por forma útil, quantas vezes até indispensável, sem subserviências que aviltam ou arrogâncias que impedem ulteriores harmonias.
Perdigão não esqueceu a lição de Montesquieu, não só quanto à tendência de quem tem o poder para dele abusar, como também quanto à utilidade prática do pluralismo, como forma de preservar a liberdade. Mas - e daí o seu