28 DE OUTUBRO DE 1993 97
na outra, pedindo que disponha da segunda depois de ouvir a primeira.
O homem sempre livre que toma sempre partido, sem cuidar de avaliar os riscos, porque apenas depende do seu próprio diálogo com aquela lei que Cícero dava por inscrita no coração dos homens, e quem lhe obedece é justo, e quem lhe desobedece é réprobo.
A primeira vida exemplar de Azeredo Perdigão foi passada no foro, numa época em que o panorama dos tribunais era engrandecido, entre outros, por homens da estatura de Palma Carlos, Mário de Castro, Francisco Gentil, Sá Nogueira, Ramada Curto, Sá Carneiro, Bustorf Silva. As circunstâncias tinham feito declinar a oratória parlamentar, e a oratória sagrada, e anunciavam a morte da oratória forense, amarrada esta ao destino do júri, e desafiada pela expansão da advocacia preventiva que respondia ao crescer paralelo do Estado e das grandes empresas nacionais e multinacionais.
Mas se aquela geração assumia com alta qualidade os desafios profissionais novos, mantinha, todavia, ainda viva a experiência da escola forense em que tinha sido educada, exercia o poder da palavra, mantinha a força do discurso, salvaguardava o carisma do tribuno, a perenidade dos valores, a estética das emoções.
Recordo, por meados do século, o interesse e a excitação com que os estudantes de leis enchiam as salas de audiência do velho Tribunal da Boa Hora, para assistir e aprender com as intervenções anunciadas desses profissionais exemplares.
A figura de Azeredo Perdigão, sabedor das leis e da jurisprudência, conhecedor das minúncias dos processos que assumia, de memória rápida a responder às imprevisíveis circunstâncias da audiência, elegante na presença e no gesto, hábil no lidar com depoentes, preciso no discurso, usando uma cortesia fria em relação aos magistrados, preservando a lealdade nas relações com os colegas, destacou-se frequentemente como um primeiro entre iguais.
Não é razoável deixar de lembrar, evocando essa sua primeira vida triunfante, o nome de Bustorf Silva, o seu tão habitual e brilhante contraditor nas lides forenses. Mais homem da barra este, por mim, o maior barrista do seu tempo, mais improvisador, mais arrebatado, mais força da natureza, mais pai Bustorf, ambos, em contradita, encheram a crónica judiciária de intervenções magistrais, enriqueceram a história da luta pelo direito de combates exemplares, acrescentaram a tradição profissional de modelos de referência.
Perdigão, o brilhante escolar da Faculdade de Direito de Lisboa, da qual foi disciplinarmente afastado, e da Faculdade de Direito de Coimbra, onde se licenciou, não viu as doutas corporações abrirem os seus claustros ao talento do licenciado insubmisso aos regimes político e da sociedade civil então vigentes.
Socialista de Estado era como alguns o nomeavam, hesitantemente, nos meus tempos de frequentador do Instituto da Conferência, pela década de 40, onde ele partilhou generosamente o saber com os primeiros estagiários do novo regime de acesso à profissão.
As disposições que tomou para o sepultamento mostram como teria servido com amor a carreira universitária que lhe negaram, ao pedir para não o separarem nem da toga forense, nem do capelo e da borla doutorais.
Estas últimas insígnias foram-lhe impostas em solene cerimónia com que a Universidade de Coimbra distingue, honoris causa, as personalidades que, a seu critério, se distinguem nas áreas que cultiva, e, neste caso, quando Azeredo Perdigão era já activíssimo Presidente da Fundação Gulbenkian.
No almoço habitual que se promove na Reitoria, o novo Doutor Honoris Causa não conteve este comentário melancólico: a Universidade repara hoje uma injustiça que me fez vai para 40 anos.
As Universidades que o recusaram na altura em que a vocação o empurrava para os claustros, foram reunindo à sua volta, no decurso da segunda vida triunfante que viveu, a unanimidade rara que consagra os raríssimos benfeitores ecuménicos das artes, das letras, e das ciências.
Quando assumiu as responsabilidades inerentes ao projecto que viria a ser a Fundação Gulbenkian, logo dando provas de um completo desinteresse material, porque abandonava a recompensadora carreira forense, tinha a reputação fundada e documentada de opositor ao regime da Constituição Política de 1933 e da oposição ao Chefe do Governo, e foi em diálogo com este que assegurou a não interferência na autonomia da instituição que projectava, decisão esta que se baseou no respeito que pessoalmente inspirava e que foi suficiente para que o compromisso assumido nunca tivesse sido beliscado.
Não se tratou de cedências, nem de submissões, nem de renúncia à diferença mantida intransigentemente, nem do interesse pessoal a sombrear a lembrança da contradição de concepções de vida que afastava os dois interlocutores. Foi antes um encontro na percepção do interesse nacional que devia presidir ao estatuto das fundações, foi depois a definição objectiva da moldura normativa a que as fundações devem obedecer, foi o respeito de ambos, Estado e Fundação, pela legalidade, obedecida com autenticidade e alto espírito de servir.
Houve seguramente inquietações conhecidas com a força que a Fundação assumiu na vida portuguesa, mas elas foram de espíritos geralmente considerados liberalizantes do regime, a dialogar pelas margens da revisão do Código Civil do Visconde de Seabra.
Mas não houve qualquer atrevimento, porque a autoridade, entretanto ganha por Azeredo Perdigão, o impedia, tal como depois a mesma autoridade seria uma salvaguarda da Fundação durante o período incerto que se seguiu à revolução de Abril de 1974.
Por isso, apenas um conceito muito restritivo da política e do homem político, pode negar a Azeredo Perdigão um talento excepcional nesse campo. Note-se, primeiro, a arte de lidar com o poder político, em regimes tão diferentes, com sedes dissemelhantes, com pirâmides de titulares tão diversas e contraditórias, salvaguardando a integridade do poder institucional alcançado e mantendo invioladas as fronteiras do seu exercício; depois, o talento da liderança, que lhe permitiu ao mesmo tempo desdenhar a carreira estadual das honras, impor-se como um elemento necessário da concertação entre o poder político e a sociedade civil, sempre pessoalmente distante e institucionalmente presente, enquanto cresciam e desabavam as trajectórias fugazes dos gestores do poder político.
Entretanto, definia e executava um verdadeiro e único projecto cultural alternativo para o Portugal que amava e pressentia a caminho de alterações estruturais profundas e definitivas. Vem a tentação de o comparar com Luís António Verney, mas a marca que deixou é específica e inconfundível. Não escreveu qualquer Verdadeiro Método de Estudar, para ser útil à República e à Igreja, Proporcionado ao Estilo e Necessidade de Portugal. Com diferente método, muito a lembrar a experiência do foro, os Relatórios da Administração da Fundação passaram a ser elementos essenciais para conhecer a realidade portuguesa e a sua evolução.