98 I SÉRIE-NÚMERO 4
Dessa avaliação dos factos partiam os projectos, verdadeiras alegações a favor de uma nova atitude perante a ciência, a cultura, as artes, as leituras da vida, as promessas de novos futuros. Foi por isso o responsável por uma nova definição dos estrangeirados,' abriu caminho aos talentos, sem cuidar de consultar ideologias, amparou as universidades e os centros de investigação, pugnou pelos centros de excelência, e não pareceu necessitar de outro apoio humano senão o de Madalena Perdigão, culta, criativa, serena, discreta, inesquecível.
Percebendo e antecipando as alterações estruturais da comunidade internacional e (do Império, os serviços e as acções desenvolvidas em direcção ao Brasil e aos territórios de África definiram, sobre o terreno, o primeiro anúncio da urgência de substituir a função soberana secular em extinção, pela reorganização do convívio, do pluralismo cultural sobrevivente nessa área em que o sincretismo não deixava apagar os valores da cultura portuguesa.
Foi uma longa vida cuja lembrança vencerá a habitual curta memória dos homens e dos povos. Não foram muitos os portugueses com igual privilégio de marcar positivamente a história das ciências e da cultura, contribuindo para o fortalecimento da nova aliança entre as duas vertentes, nova aliança que as perplexidades e perigos deste fim de século reclamam.
Tendo uma clara e rigorosa percepção do globalismo da época, do internacionalismo crescente, da redefinição compulsiva das funções históricas dos Estados, serviu com igual amor os valores universais e os valores da Nação que amava, incansável na tarefa recompensada de conseguir a harmonia que lhe inspirava um sentido cristão da vida. Foi um benemérito da Pátria!
A Assembleia da República é o órgão da soberania indicado para o reconhecer e proclamar. Em nome de um grupo de Deputados desta Casa, tenho a honra de entregar esta proposta na Mesa da Assembleia.
(O Orador reviu). Aplausos gerais.
O Sr. Presidente: - Pára uma intervenção, tem a palavra o representante do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, Srº. Deputado José Calçada.
O Sr. José Calçada (PCP): - Sr. Presidente, Sr.ªs. e Srs. Deputados, Srs. Memmbros do Governo, Sr.ªs Autoridades Convidadas, Senhoras e Senhores: José Henrique de Azeredo Perdigão, aquando da sua morte no passado dia 10 de Setembro, mantivera-se, praticamente durante 37 anos, como Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. Raramente em Portugal, e não apenas durante este século, uma obra e um homem se identificaram tão completamente. Moldaram-se de tal modo uma ao outro durante quase quatro décadas que, mesmo ao nível do imaginário popular, Fundação Gulbenkian e Azeredo Perdigão são uma e a mesma coisa. Se pelos frutos se conhece a árvore, parece-nos rigoroso afirmar que a Fundação reflecte, antes de tudo, o carácter e a vontade daquele que foi o seu Presidente e enforma-os de maneira objectiva, poupando-nos assim ao impressionismo de análises de pendor psicologista, tomadas até desnecessárias em face da existência física de uma obra que por si mesma se impõe. Se cada homem se constrói na sua própria circunstância, talvez não seja gratuito afirmar - pelo menos como trilho para um trabalho futuro - que o «seareiro» Azeredo Perdigão terá encontrado no trabalho desenvolvido na e pela Fundação a síntese possível e, por isso mesmo, transitória entre ideais e tempos, cujos desequilíbrios não eram fáceis de controlar. Porque há muitas batalhas, e diferentemente assumidas, dentro de uma mesma luta pela dignificação do ser humano enquanto sujeito da sua própria História.
A cultura desempenha neste domínio um papel insubstituível e pode dizer-se que, mesmo quando aparentemente garantidas as bases económicas e materiais da vida social, a alienação cultural pode conduzir, e conduz, à perda de identidade como cidadão e como pessoa. Quando - nesta tarefa que, como a História, continua a não ter fim - olhamos para o trabalho desenvolvido pelas bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian, bibliotecas que tranquilamente consideramos a maior obra da Fundação, não podemos deixar de contrapor esse trabalho às presentes tentativas de mercantilização da cultura e dos produtores culturais no quadro dos acordos do GATT.
O Sr. João Amaral (PCP): - Muito bem!
O Orador: - Permita-se-nos a indicação de alguns números, não por eles mas porque, aqui, se assumem antes de tudo como um valor qualitativo: existiram 62 bibliotecas móveis e 168 fixas, servindo 3946 localidades e cerca de 5 milhões de habitantes; entre 1958 e 1990, foram atendidos 46 milhões de leitores, dos quais 36 milhões de crianças e adolescentes, com o volume global de 146 milhões de livros requisitados. Quantos desses leitores aprenderam assim, verdadeiramente, a ler, quantos deles assim tiveram a sua única escola, quantos deles assim descobriram os outros e se descobriram a si próprios, quantos deles assim quebraram o isolamento a que de outro modo estariam condenados?!
Hoje, as bibliotecas itinerantes já não percorrem as estradas cheias de curvas e os caminhos poeirentos do nosso país - nem tão-pouco as autoestradas «europeias» que passam ao lado de povoações desertificadas do interior, e por isso sem crianças e sem leitores.
Vozes do PCP:- Muito bem!
O Orador: - Também aqui uma mistura perversa e pervertida de prioridades erradas e de falso cosmopolitismo conduzem hoje à litoralização progressiva do País, ao agravamento da sua dependência externa e a um risco acrescido de diluição da sua identidade cultural e nacional - enfim, a tudo o que as bibliotecas pretenderam generosamente pôr um travão. E as bibliotecas funcionavam - imaginem, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo, Sras. Autoridades Convidadas, Senhoras e Senhores! - com prejuízo, com um enormíssimo prejuízo financeiro, e nunca ninguém na Fundação teve a ideia de perguntar por que razão é que essa actividade não poderia dar lucro, nem ninguém se lembrou sequer de fazer um «estudo-de-mercado» para saber se as bibliotecas se «justificariam»...
Quando hoje nos confrontamos com o economicismo e a desresponsabilização do Estado na implementação séria de uma Rede Nacional de Leitura Pública, estamos em condições de melhor apreciar os esforços da Fundação nesse domínio fundamental. E mais: estamos em condições de melhor entender o facto de, ao mesmo tempo e pelas mesmas razões profundas, o Centro de Cálculo Científico do Instituto Gulbenkian de Ciência haver possuído um dos primeiros computadores instalados em Portugal e de o Centro de Biologia, através dos Estudos Avançados (de Oeiras), haver sido pioneiro na realização de cursos de