756 I SÉRIE - NÚMERO 19
Os municípios foram, durante esse meio século, repartições desconcentradas, mas sempre atentas ao assentimento, quando não ao deferimento, dos «césares» do Terreiro do Paço ou, melhor dizendo, do «césar» único de S. Bento, a cuja vontade era reconduzida, à força, uma suposta vontade colectiva.
O grande Alexandre Herculano, o historiador que mais fundo levou a investigação sobre a origem e a história do municipalismo peninsular, chama ao município, na sua monumental História de Portugal, «a mais bela das instituições que o mundo antigo legou ao mundo moderno».
Citando Tocqueville, também grande entre os maiores, o município «parece ter saído directamente das mãos de Deus». E, mais, informa-nos ele que «em parte nenhuma talvez, durante a Idade Média, teve mais influência no processo da sociedade e foi mais enérgico e vivaz do que em Portugal».
Legou-nos esta profecia: «grandes destinos lhe estão, porventura, reservados no porvir: ao menos é dela que esperamos a regeneração do nosso País, quando a experiência tiver demonstrado a necessidade de restaurar esse esquecido mas indispensável elemento de toda a boa organização social».
Os bárbaros do norte respeitaram, se é que não valorizaram, a instituição municipal. Os bárbaros que abafaram os valores e destruíram a obra da I República tentaram decepar as raízes do baluarte das liberdades que o município havia sido e condenaram-nos a ter de esperar pela II República, que Abril nos legou, para podermos recuperar esse imorredoiro subsídio da alma nacional.
É sabido que o estabelecimento de alguns concelhos no território que é o nosso precedeu a fundação da monarquia, é anterior à própria Pátria.
Lembro tudo isto para que tomemos consciência de que se nos aquietou a consciência um certo grau de reposição do poder local após Abril, ficámos longe, e longe continuamos a estar, de lhe ter assegurando o significado e o prestígio que teve no tempo dos nossos maiores. Às vezes, esquecemo-nos disso e continuamos a praticar, e quantas vezes a defender, excessos, hoje mais do que nunca intoleráveis, de centralismo político e administrativo.
«Antiquíssima e idêntica» - como diria o Fernando Pessoa é também a paróquia, origem da freguesia. De origem religiosa, deveio divisão administrativa e unidade de poder local. É, deste, o primeiro degrau mas vem crescendo em importância e não faltam razões para que essa importância aumente.
Previu a Constituição de 1976 - a previsão manteve-se nas suas anteriores revisões e vai manter-se na que está em curso - um terceiro patamar de poder local, as regiões administrativas. Inicialmente queridas e votadas por todos, como natural extensão do município, viria a tornar-se, com tempo e a demora da sua criação, um relativo pomo de discórdia.
Aconteceu um fenómeno estranho. Durante 19 anos, todos os partidos defenderam as regiões administrativas, talvez com excepções sem grande significado. Nas diversas campanhas eleitorais todos os seus líderes se reclamaram delas, todos as traduziram em promessas eleitorais e todos receberam a paga nos correspondentes votos.
Ao 19.º ano, um desses líderes, que havia nove anos dispunha do poder necessário para garantir a sua instituição, deu, de repente, o dito por não dito e instalou na opinião pública um cisma que engrossou e perdura. Uma vez mais para ganhar votos, mas agora pela operação inversa, arvorou-se em defensor da unidade nacional e passou a incutir nos menos preparados o receio das regiões administrativas, ou seja, da terceira autarquia até hoje inutilmente prevista na Constituição.
Não explicou, nem tentou explicar, porque passava a dizer não onde antes havia dito sim, mas fez apelo a sentimentos nobres e respeitáveis. Com as regiões, a nossa preciosa unidade nacional corria o risco de ser esquartejada. As regiões eram inúteis, dispendiosas, burocratizantes e «cacicófilas». Por sobre isso insinuou-se um paralelismo absurdo entre as regiões administrativas e as regiões insulares. Convicto de que o neonacionalismo voltara a render votos, atacou o projecto constitucional da regionalização do País a partir dessa plataforma requentada e recorrente.
Confesso que não consegui fugir a uma reacção de interior indignação. Eu, desde o início, não militava entre os mais entusiastas da regionalização administrativa, mas por outras e bem diversas razões. A principal, de entre elas, era o meu entranhado apego ao municipalismo. Parecia-me a mim que a experiência municipal ainda não tinha sido levada até à última fronteira das suas virtualidades e queria que os municípios recebessem mais poderes e mais meios, a fim de poderem recuperar todo o prestígio de outrora, e as regiões eram por mim encaradas como um tecto à natural expansão dos seus poderes.
Por outro lado, receava que viesse a acontecer com elas o que, de certo modo, havia acontecido com a província, que nunca ganhou raízes, e na prática não passou de uma divisão territorial, com alguns poderes desconcentrados e nenhum descentralizado, em qualquer caso sem raça de poder autárquico ou autónomo, tanto faz.
Se assim viesse a ser - pensava eu - a repetição do descrédito da prevista autarquia de grau superior acabaria por inquinar o prestígio do poder local, todo ele.
Mas o que eu nunca fui foi favorável a situações de inconstitucionalidade por omissão. Não cumprir reiteradamente a matriz da lei é estimular o espírito de resistência em relação a todas elas. Ora, há 20 anos - tantos quantos os da duração do primeiro e segundo escalões do poder local - que a Constituição aguarda acatamento e isso é mais grave para a saúde da República do que um ou outro episódico risco inerente à criação das regiões administrativas.
Os outros riscos que a estas eram imputados nunca me impressionaram. Eram, todos eles, riscos eventuais, comuns aos próprios municípios e que a instituição destes radicalmente desmentiu. Os municípios também fazem despesa, também implicam instalações, funcionários, burocracia e não «esquartejam» menos o país do que hão-de as regiões «esquartejá-lo», isto é, absolutamente nada.
E confundir as regiões administrativas com as regiões insulares revela tal ignorância que é preciso passar por sobre a distinção abissal entre umas e outras. As regiões insulares não gozam só de autonomia administrativa mas também política. São dotadas de órgãos de governo próprio. Gozam de importantes poderes legislativos e executivos. São dotadas de estatuto próprio, que só pode ser alterado por sua iniciativa. Aparte as matérias de representação exterior, defesa, justiça e pouco mais, o poder central não tem sobre elas quaisquer competências.
Mas as regiões administrativas não são regiões «insulares-menos», são «autarquias-mais». Não serão dotadas de nenhuma espécie de poder político, nem de governo próprio. As competências que para elas se prevêem situam-se predominantemente na área da planificação e da coordenação de realizações e actividades a nível supra-municipal.