1624 I SÉRIE-NÚMERO 44
Contudo, há um aspecto em Garrett que me fascina e que ele próprio sintetizou numa pequena passagem do seu justamente célebre Discurso do Porto Pireu Dizia Garrett nessa belíssima peça de oratória, em resposta ao Discurso da Coroa, nos idos do ano de 1840 «Como cidadão nunca renunciei a um direito »
A frase é curta, mas tão densa que se pode bem tomar como um programa de vida, para mais que nesses dias agitados do século XIX, que foram dados viver ao nosso homenageado, tais direitos de cidadania (como ainda hoje, diga-se em abono da verdade) eram bem difíceis de exercer
É de notar que Garrett não fala em deveres de cidadão mas, sim, em direitos, mesmo que não renunciar a esses direitos fosse, como foi para ele e para muitos da sua geração, aceitar um calvário de exílios, perseguições e incompreensões Porque a cidadania impõe aos homens a participação e a doação de seus talentos ao governo da República
Desde sempre, ser cidadão em país com propensão para albergar súbditos foi uma escolha difícil e penosa Escolher os direitos de cidadão e nunca renunciar a qualquer deles só pode ser considerado um programa de vida corajoso
Mas como guardamos nós - acima de tudo nós, que vivemos quotidianamente na mesma Casa que albergou Garrett -, muitos outros que escolheram a cidadania como ideal, como guardamos nós a memória desses homens que são faróis que deviam iluminar a nossa caminhada?
Temo que o façamos tímida e quase envergonhadamente O nosso espaço físico parlamentar, pelo menos, não tem sido pródigo em guardar vivo o espírito democrático daqueles que teimaram em não abdicar dos seus direitos de cidadãos Ao próprio Garrett, não lhe concedemos mais do que uma imagem colectiva com outros vultos do liberalismo e a outros, que o acompanharam nos ideais democráticos, parecemos temer venerá-los como cidadãos que exerceram os direitos De Manuel Passos, recordamos o fundador da nossa biblioteca num belo busto, sem duvida, mas sem outra referência ao esforço de cidadania, nem a uma obra política de denodado esforço de democratização das instituições Aliás, que diria Manuel Passos se visse como tratamos e como usamos a biblioteca que nos legou?
E o próprio Garrett, que, como todos sabemos, resistia dificilmente à lisonja e ao gosto pelo culto pessoal, como nos trataria se soubesse que entre os livros que temos ao nosso dispor como auxiliares e inspiração parlamentar não existe sequer, já não digo uma colecção das obras completas, mas, ao menos, um exemplar dos seus discursos parlamentares? E quanto nos serviria a meditação nas palavras que proferiu com paixão e amor pátrio nesta Casa Mas nós, portugueses, somos assim capazes de idolatrar a memória dos outros e incapazes de vermos a virtude dos nossos Contudo, os erros também se corrigem e não e tarde para arrepiarmos caminho Até ao final da legislatura dá tempo de emendarmos a mão e, ao menos, termos o tribuno Garrett e deixarmos no espaço parlamentar testemunho de preito desta geração
Garrett compreendeu como poucos o seu tempo, lutou e sacrificou-se para o modificar e para deixar conscientemente aos vindouros uma herança de dignidade civil e progresso espiritual, que nós temos o direito de usufruir, mas que parecemos temer toma-la em mãos
Num dos seus ensaios mais justamente celebrados, Portugal na Balança da Europa, cujo tema devia constar hoje na educação da nossa juventude como tema central, deixou Garrett outra reflexão, quase aviso, que muito me tem tocado Dizia ele, logo no prólogo à nação portuguesa «Em dois grandes escolhos se perde a liberdade na tibieza com que se defende, ou na demasia com que dela se goza»
Sábia palavras que hoje, passados mais de 100 anos, vemos todos os dias serem comprovadas no mundo que nos rodeia Usamos com frenesim as liberdades, mas não cuidamos quase nunca com entusiasmo da liberdade Assistimos quase indiferentes ao morrer aos poucos por esse mundo fora da liberdade e protestamos pouco convictamente contra isso É na própria Europa que diariamente assistimos impávidos ao abafar do exercício das liberdades e ao afogar em autêntica barbaridade e despotismo a bela flor da árvore da liberdade que nos orgulhamos de ter feito plantar entre nós Somos demasiado frouxos, a começar aqui no Parlamento, no ardor que nos devia animar pela defesa da liberdade e não damos, estou certo disso, o exemplo de cidadãos que usam com moderação os benefícios das liberdades, das cívicas e das pessoais Ai, como tinha razão Almeida Garrett ao propor que não se esquecesse nunca que está constantemente nas obrigações da cidadania zelar para que não se afunde nos dois escolhos, o da tibieza e o da demasia, a liberdade Demasiado ocupados com as tarefas do imediatismo, descuramos tantas vezes as tarefas inadiáveis do tempo dedicado ao essencial Tarefas que não dão certamente triunfos e que geram tantas vezes a incompreensão, mas que se tornam na pedra angular da nossa obrigação de nunca renunciarmos aos direitos de cidadãos
Almeida Garrett, autodisciplinado na frequência dos clássicos greco-romanos (outro dos bons hábitos que perdemos), cultivou mais uma virtude que é bem de admirar, principalmente entre os políticos muito propensos na aceitação de que a gratidão anda ausente da política Ou até, dito de outro modo, tomando como lição a vulgata de um Maquiavel degenerado, o político faz gala em apregoar que a política real, a política dura, não conhece a gratidão nem a utiliza Pois, Garrett, animal político por excelência, negou sempre que tal aforismo devesse existir e usou da gratidão, abundantemente, tendo com ela despertado a admiração dos seus pares e inúmeros admiradores
Apregoou a gratidão que devia aos seus mestres, àqueles que lhe haviam aberto os caminhos e dado os instrumentos para a aprendizagem e para a formação intelectual, fossem eles os tios ilustres, o Bispo de Angra ou o Juiz de Fora da Junta da Fazenda dos Açores, ou fossem eles os professores régios da escola pública, que frequentou em Angra, provincianos, mas eruditos e sábios Do alto da sua ciência e do seu saber, superiores ao deles, sem dúvida, nunca os esqueceu e sempre os referenciou como marcos indeléveis Até mesmo em casos mais próximos do exercício da função política, sempre recorreu à virtude cívica da gratidão para retribuir, pessoalmente, ou através do Estado, quando o servia, com recompensas e honrarias, os sacrifícios dos cidadãos anónimos que tudo haviam sacrificado para implantar o regime de liberdade em Portugal. Que o fizesse à Terceira e a Angra com o título de Heroísmo e com o colar da Torre e Espada, não seria admiração de espantar, pois sempre encontrou naquela segunda pátria, como dizia, respeito e agradecimento pela sua acção Mas até sobre o ingrato Porto, que nunca aceitou elegê-lo como Deputado, derramou honrarias e gratidão Era esta mais uma maneira de cumprir o seu progra-