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5 DE FEVEREIRO DE 1999 1627

Garrett foi impiedoso «saberá essa gente que m (com todas as letras) também é galicismo»? É claro que se não ficou por aqui, e logo prescreveu a dieta alimentar que se imagina Mas receio estar sendo irreverente demais em razão do lugar aonde o sou.
Invoco apenas a apreciação dos maiores, que é vasta a galeria dos seus encomiásticos biógrafos, à cabeça dos quais figura Gomes de Amorim, que viveu em permanente adoração de Garrett e consagrou os últimos anos da sua vida a coligir e escrever a sua mais completa biografia Outros, além dele, como, o já aqui citado, Embaixador Calvet de Magalhães A estes, em particular, me arrimo no quase retrato de Garrett, que a seguir esboço.
É frequente a invocação de Camões como termo de comparação para aquilatar do génio de Almeida Garrett Tão apenas isso basta para lhe assegurar um lugar no podiam dos mais gemais escritores portugueses Terá decerto contribuído para isso o facto de ter escrito, com tão singular talento, a romanceada biografia poética do grande épico, segundo modelo literário que ele próprio situou «fora das regras», de tal modo, que afirmou «se pelos princípios clássicos o quiserem julgar, não encontrarão aí senão irregularidades e defeitos» Nesse tempo, Garrett dizia de si próprio não ser «nem clássico nem romântico» A verdade é antes que, excepcionando o período puramente arcádico dos seus primeiros escritos, nomeadamente os do tempo de estudante de Coimbra (até este mérito teve ), ele foi o verdadeiro introdutor do romantismo em Portugal, e foi em direcção a ele que a sua obra permanentemente viajou O que ele admitia como defeitos dessa obra monumental eram apenas a expressão da novidade que nela, sem defeito, havia.
Questão diversa é saber até que ponto ele teve consciência disso Chegou a considerar o romantismo um «andaço das bexigas», que nunca teria saído da Península O que, segundo ele, antes, não havia era «a vacina, como a prepararam Gõethe e Scott, essa é que não havia, e creio que fui eu que a introduzi» Encomendo-me uma vez mais ao grande Herculano Qualificou-o ele de «grande reformador da literatura portuguesa e o verdadeiro introdutor do romantismo em Portugal E bem sabemos que Herculano foi também atacado pelo tal «andaço das bexigas»
No Camões, Garrett absorveu muito da luz que vinha do épico Inclusive na formulação da sua ainda epopeica forma de versejar Serve de exemplo esta descrição do Gigante Adamastor «As iras lhe arrostei, ouvi sem medo/Os amarelos dentes a ranger-lhe/Por entre os furacões de atra porcela/Vi a esquálida barba de despeito/Arrepelar-se, e a cor terrena e pálida/Ao clarão dos relâmpagos lu-zir-lhe/De sanguinosa cólera inflamada».
Os elogios aos múltiplos talentos de Almeida Garrett surgem quase sempre acompanhados de um compreensivo sublinhado dos seus defeitos pessoais Que defeitos eram esses?
Desde logo, um incomensurável pendor para o auto-elogio, já aqui refendo A vaidade física, essa incontornável, Garrett juntava uma verdadeira vaidade intelectual Redigia, como se não fossem da sua autoria, as suas próprias referências biográficas Mas era «gato escondido com o rabo de fora» O verdadeiro talento literário é por regra inocultável Inculcava-se «descendente de uma nobre família irlandesa», apesar de oriundo, como é sabido, de uma, alias, honrada família pequeno-burguesa. Em requerimento ao Ministro do Reino, fiel à obsessão de se nobilitar, intitulou-se, sem o ser, «fidalgo da casa real» Viria a sê-lo mais tarde, não nessa altura Nos seus cartões de visita fez inscrever «Lê Chevalier De Almeida Garrett»
Mas, quando por qualquer razão lhe convinha, também se autoqualificava de «simples homem de letras», tendo escrito, com desdém «seja todo o Mundo em Portugal feito barão, conde, visconde, grã-cruz, etc, que isso lhe não disputarei» Mas a verdade é que disputou E acabaria por aceitar o título de Visconde - que esteve longe de lhe ter sido imposto, antes objecto de repetidas diligências propiciatórias -, além de condecorações várias, que lhe alegraram o outono da vida e que, raras vezes, terão sido, tão justa e merecidamente, atribuídas A única que recusou foi por a não julgar ao nível da alta conta em que se tinha Esta fraqueza era aliás bastante mais frequente do que hoje é, embora ainda hoje o seja. É conhecido o corrosivo aforismo da época «Foge cão, que te fazem barão. Mas para onde, se me fazem visconde?»

Risos gerais

No auto-elogio sobre as suas intervenções parlamentares, sem favor notáveis, foi além de todos os limites Atribuiu-se, por exemplo, «o divino dom da eloquência» e considerou o discurso que passou à história como do Porto Pireu, já aqui refendo, «o mais vigoroso e eloquente discurso pronunciado na tribuna portuguesa» Eu também acho. Ele conteria «períodos que não envergonharam a Demóstenes ou a Cícero»
Noutra oportunidade escreveu sobre si mesmo, de novo ocultando a autoria «como obra literária é sem dúvida a oração moderna que mais faz lembrar as declamações clássicas da velha Atenas Em muitos dos seus períodos, recorda os turbilhões de Demóstenes»
Mas a fraqueza da vaidade física sobrepujava decerto esta outra vaidade Garrett era o tipo acabado do dandy, do janota de gosto amaneirado Usava chino para ocultar um defeito na cabeça resultante da queda de um cavalo Vestia com esmero chocante acolchoava as ancas e as bamgas das pernas, à força de espartilhos, adelgaçava a cintura, usava casaca assertoada, calças de quadrados, camisas de seda, coletes de ramagens berrantes, gravatas a condizer, chapéu branco e monóculo de dar nas vistas, que não de ver, charuto à la mode, a rematar.
Assim, mais ou menos, o descreveu a Ramalho! Figura - a seu modo também árbitro de elegâncias - que se não esqueceu de referir ainda os estojos de cosméticos da sua perfumaria, os seus utensílios de toillete, os cofres perfumados das cartas de amor. Mas a desfazer suspeitas que tais usanças sugerem, rematou o retrato descrê vendo--o de chibata em punho para vergastar as orelhas do Velho Mundo Português, obrigando-o a abrir a primeira garrafa de champanhe Acrescentou a isto um saborosíssimo comentário «Nós não éramos todos - disse - senão uns pobres velhotes, uns ginjas, uns chéchés».
Garrett tinha consciência do seu próprio ridículo. E não desconhecia, por certo, o anátema de Voltaire, quando formulou a sua famosa prece - «Senhor, tornai ridículos os meus inimigos»

Risos gerais

Ramalho escreveu a esse propósito «ridículo lhe chamaram pela quantidade dos pequenos defeitos que ele cultivava, e que eram, bem simplesmente, o reverso das suas qualidades encantadoras».