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2772 I SÉRIE - NÚMERO 77

Aplausos gerais.

Sr. Presidente da República, Minhas Senhoras e Meus Senhores: 25 de Abril, o Dia da Liberdade. O dia em que os capitães, cansados da guerra, resgataram Portugal, fazendo emergir da ditadura a luz, para que pudéssemos nas ruas construir o dia! Os Capitães de Abril que, daqui, quero hoje, como sempre, vivamente, na sua generosidade, saudar! Os capitães a quem o povo português durante gerações de inconformismo e luta «mandou ser capitão revoltado».
Como diz Ary dos Santos: «Ser capitão revoltado/É o Povo que lhe diz/Que não ceda e não hesite/pode nascer um país do ventre duma chaimite». E nasceu!
Um País novo que pôs fim à ditadura, ao tempo do pensamento vigiado e único, ao tempo do terror, da censura, do isolamento, das prisões, do exílio. Um tempo de viragem, um tempo de começo, um tempo de projecto, um tempo de construção.
E é precisamente, Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Convidados, desse Abril e desse País como presente e, sobretudo, como futuro a construir que importa falar.
Um Abril que nunca por nunca queremos ver transformado em mera sessão comemorativa. Um Abril em que nunca por nunca queremos que se abdique do sonho para nos fixarmos na recordação ou na melancolia. Um Abril que, formalmente, é sinónimo da democracia que se baseia num conjunto de direitos e liberdades públicas e se legitima enquanto tal, como organização da sociedade e do Estado, na busca do bem-estar, do desenvolvimento e da paz, como forma de assegurar a todos uma igualdade de oportunidades e uma existência digna.
Um Abril, contudo, que no seu significado mais autêntico, mais profundo, enquanto liberdade, enquanto democracia, enquanto expressão de poder partilhado, só deixará de ser uma referência simbólica, um conceito cristalizado, uma realidade por construir, um 25 de Abril que só deixará de ser uma meia verdade - a meia verdade que é como habitar meio quarto, ganhar meio salário e só ter direito a metade da vida, a meia verdade - que, dizia, só se afirmará plenamente como espaço de exercício da liberdade, como vivência individual e colectiva, como escolha, como destino solidário, como sentido da própria vida.
O sentido que falta à vida depois de Abril e que só conseguiremos, em conjunto, encontrar quando erradicarmos o analfabetismo e as periferias dos guetos geográficos ou sociais.
O sentido que só encontraremos quando a escola, em vez de se afunilar nas mentes e no acesso, se abrir à vida, se alargar nos horizontes mas também no gosto pela experimentação, no estímulo pela responsabilidade e pela crítica, no respeito pelo outro e pela natureza.
O sentido que falta e que só encontraremos quando, na vida, o direito à diferença cultural, religiosa, étnica e sexual deixar de ser tabu e quando a igualdade entre todos, como sinónimo da liberdade que pensa mais nos outros que em si própria, ousar finalmente transformar-se em justiça.
O sentido pleno que falta e só encontraremos quando, ao trabalho alienante e como direito em extinção, se suceder o trabalho como meio de realização individual, factor de desenvolvimento e de libertação para a vida.
O sentido que falta e só encontraremos quando, no reencontro com a nossa História, compreendermos a nossa condição de «primeiros exilados da Europa» e, nessa Europa, assumirmos a mestiçagem das nossas raízes, a riqueza da nossa identidade, a um tempo una e indivisível, e soubermos fazer da cooperação um fim e da solidariedade para com aqueles que vivem a sua diáspora uma vivência fraterna e quotidiana.
O sentido pleno da vida nascida de Abril que só encontraremos quando os recursos naturais deixarem de ser vilmente tratados como meros objectos passíveis de destruição, apropriação ou troca, e forem preservados como bens comuns, como condição de sobrevivência e como pertença de todos nós.
Um sentido para a vida que, após Abril, só encontraremos quando, em nome da memória que não se rende, soubermos optar entre a paz e a guerra, a vida e a morte, a palavra e a bomba e soubermos frontalmente recusar e não ser cúmplices da violência, do sofrimento e da morte.
Sr. Presidente da República, Minhas Senhoras e Meus Senhores: Falar de Abril enquanto projecto de construção é forçosamente, hoje, falar da nossa responsabilidade face ao futuro e da viagem que nele, colectivamente, temos de empreender.
Aquilo que verdadeiramente hoje se reclama, aquilo que ele requer, precisamente para dar vida a Abril e lhe garantir possibilidade de existência, é que ele se assuma como veículo criativo, libertador e de radical mudança.
Mudança que é forçoso operar no modo como vivemos, como produzimos, como consumimos.
Mudança quando tantas interrogações pesam sobre a sociedade, o planeta, o nosso futuro, o dos nossos filhos, o dos nossos netos.
Mudança na economia que, tal como existe, tem provado ser fonte de miséria, de exclusão, de degradação ambiental.
Mudança numa sociedade mergulhada no consumismo exacerbado, aprisionada pela ditadura dos objectos, que à solidariedade contrapôs a competitividade, que se afirma pelo ter e não pelo ser, que perdeu de vista a visão de longo prazo para se fixar no imediatismo e na pequenez dos ciclos eleitorais.
Mudança no tempo em que todos os bens são transformados em meros objectos passíveis de troca, tempo de apropriação privada de bens patrimoniais da humanidade, mesmo aqueles que são suporte da vida, como o ar que respiramos, a água que bebemos, a terra que pisamos.
Mudança em tempo de globalização, de ditadura de mercados, de glorificação do lucro como valor sagrado, em nome do qual tudo se sacrifica, destrói e parece justificar.
Mudança em tempo de crise ecológica sem paralelo que tem gerado desigualdade, destruição dos recursos, anulação da diversidade, pobreza, padronização cultural, perda de valores.
Tempo sobre o qual pairam novas ameaças, provocadas pelo apartheid social, as desigualdades, as rupturas dos ecossistemas, as alterações climáticas, a destruição da paisagem, o desaparecimento de espécies. Rupturas estas que, de modo irreversível, nos poderão tomar prisioneiros de processos incontroláveis e pôr em risco a nossa própria sobrevivência.