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3007 | I Série - Número 77 | 03 de Maio de 2001

 

Posso, pois, anunciar que o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, finalmente dado a lume neste ano da graça de 2001 pela Academia das Ciências de Lisboa, vai chegar às nossas estantes e, esperamos, às estantes de todas as escolas do País e de todos os níveis de instrução e vai permitir, assim os deuses nos sejam propícios, que todos nós sem excepção possamos dispor de um repositório lexical em que apoiar a nossa escrita e mesmo a nossa expressão oral.
Fundada em 1779 pelo Duque de Lafões e Abade Correia da Serra, colaborador de Benjamin Franklin, publicou a Academia logo em 1793 o primeiro volume, com a letra A, de um dicionário de português, obra excelente de Pedro José da Fonseca e sujeita posteriormente a vários remoques, porque a última palavra - não se assustem, porque isto às vezes acontece - é a palavra «azurrar». Ficou-se pela letra A, certamente, devido à incapacidade portuguesa de compreender que um só filólogo dificilmente poderia levar a cabo, com recolha de textos dos mais diversos autores das mais diversas épocas, um dicionário da língua portuguesa.

Pausa.

Srs. Deputados, peço-vos que me dêem atenção para ver se aprendem alguma coisa! Às vezes, também vos faz bem!…
Isso, contudo, não obstou a que Rafael Bluteau, nos princípios do Século XVIII, tivesse publicado os seus 10 volumes e que o dicionário de Morais tivesse vindo a público no fim do mesmo século. O primeiro teve de ser reeditado pelos alemães, tal é a sua importância internacional e a indiferença portuguesa; o segundo já foi objecto de 10 edições e ainda é o repositório do português anterior ao português contemporâneo.
Para nosso embaraço, outro dicionário de igual valor, publicado no Século XIX, o de Caldas Aulete, só se pode encontrar em edição brasileira, porque os nossos irmãos sempre deram e dão maior importância aos estudos gramaticais e lexicais da língua portuguesa do que nós próprios.

Pausa.

Ali, aquele companheiro que me vira a traseira, certamente compreenderá isso!

Risos.

Peço desculpa, Sr. Deputado, mas, como não vi a dianteira, limitei-me a falar da parte que via!

Risos.

Dizia que os nossos irmãos brasileiros sempre deram e dão maior importância aos estudos gramaticais e lexicais da língua portuguesa do que nós próprios. E porquê? Porque têm mais orgulho nela e maior auto-estima.
Um pequeno texto para ilustrar quem era Caldas Aulete, uma farpa das doces de Ramalho Ortigão: «Deu-se à pedagogia, aos estudos dos métodos do ensino primário (…), trazia entre mãos a obra de um dicionário da língua portuguesa (…), chegou a fazer imprimir um prólogo (…)» - Ramalho não soube que ele tinha feito o dicionário completo -, «(…) libelo contra os dicionaristas (…) cujos erros ele cita com uma pachorra beneditina reforçada de grande veia cómica (…), ninguém mais próprio do que Caldas Aulete (…) para iniciar em português as lições de coisas, para fundar em Lisboa os jardins de infância. Quando Froebel montou a sua primeira escola para as criancinhas de 2 anos de idade, tiveram-no geralmente por um doido. Isto não obstou a que os risonhos jardins de crianças sejam hoje as primeiras das glórias da educação alemã. Se Caldas tivesse tido em Portugal a mesma ideia, tomá-lo-iam igualmente por um orate. Somente julgá-lo-iam nocivo, e acabariam decerto por amarrá-lo».
Não sei que milagre aconteceu para que José Pina Martins e João Malaca Casteleiro - o primeiro, meu colega de sempre, o segundo, meu colega e antigo aluno de latim - tivessem conseguido, mediante a boa vontade de instituições do Estado e privadas, como a Fundação Calouste Gulbenkian, reunir um grupo de 60 especialistas que, num trabalho interdisciplinar, conseguiram recolher 33 000 entradas e 70 000 vocábulos de autores portugueses contemporâneos e coligir o emaranhado lexical de neologismos e termos técnicos que só é possível deslindar num trabalho permanente, aturado, competente e, sobretudo, beneditinamente paciente.

O Sr. Basílio Horta (CDS-PP): - Muito bem!

O Orador: - De hoje em diante já sabemos que ranking já é usado, como vimos na sessão em que discutimos a publicação ou não das avaliações das escolas. Só que, discretamente, os dicionaristas nos aconselham o termo classificação. Pelos vistos, é melhor!
De hoje em diante também sabemos que o plural de social democrata - atenção aí na bancada! - é sociais democratas e não, como apregoava a bela, loira e socialista Estrela, minha colega de filologia clássica, hélas (permitam-me o galicismo), da Faculdade de Letras.
De hoje em diante também já sabemos que estamos diante de um universo colonizado pelos descendentes da Rainha Vitória, que o Professor Etiamble, professor de literatura comparada na Sorbonne, denunciava nos anos 60 no seu livro Parlez-vous franglais?.
Resta-nos uma consolação: é este o nosso arrimo, é este o dicionário que nos pode tirar dúvidas, só que por pouco tempo, porque a língua, todos os dias, todos os anos, evolui e é necessário que, atento a esta evolução, haja permanente na Academia das Ciências um grupo que a estude e siga. Esse grupo só pode existir se o Portugal político e o Portugal económico por ele se interessarem. E aqui tem esta Câmara a responsabilidade de, ao estudar o Orçamento, pensar nas dezenas de pessoas que, sem que ele tivesse esboçado um único gesto significativo, lhe puseram à disposição dois magníficos volumes que só nos podem orgulhar e que criaram para a língua portuguesa uma referência científica e internacional. Só falta um CD-ROM! É verdade, falta um CD-ROM e falta, de igual modo, que, aproveitando o trabalho lexicológico feito durante séculos este dicionário, cresça para o passado e abranja os autores que sucederam desde os inícios da nossa língua e literatura e vocábulos.