I SÉRIE — NÚMERO 77
44
A instauração da Inquisição em Portugal, imposta pelos reis católicos como moeda de troca para a
realização do casamento de D. Manuel I com a infanta D. Isabel, em época em que os judeus representariam
cerca de um quinto da população portuguesa, bem como o «decreto de expulsão dos hereges», em 1496,
foram sentidos como uma «segunda expulsão de Jerusalém», de acordo com a poesia da época.
Muitos autores referem a diferença de grau da atuação da Inquisição portuguesa relativamente à
espanhola. Mas tais considerações, a serem verdadeiras, não poderão nunca apagar a ignomínia dos crimes
abomináveis cometidos por esta instituição, nem poderão apagar que a expulsão ou a condenação de
eminentes figuras da sociedade portuguesa, vultos enormes que marcavam a Europa e o mundo do seu
tempo, representaram a decapitação dos recursos do País em variadíssimas expressões imateriais e
materiais.
Para o comprovar há a forte marca que imprimiram muitos dos que foram expulsos ou conseguiram fugir,
nos países onde foram parar, nos domínios do pensamento, do saber e do empreendedorismo.
As ignomínias praticadas dão bem expressão ao empobrecimento ético, intelectual, económico e social que
o fanatismo, a intolerância e o obscurantismo, casados entre si, sempre geram, através da produção de
monstruosidades que nos envergonham e que comprometem não só a época em que são cometidos como as
que se lhes seguem.
Tratou-se, por antecipação, da tradução, na prática, do conceito de «banalidade do mal», desenvolvido já
na nossa contemporaneidade, a propósito do Holocausto.
De todos os que lutaram contra a Inquisição, destaca-se, em posição ímpar, o padre António Vieira. Por
isso, foi insistentemente perseguido e até preso. Muitos e denunciadores foram os discursos que elaborou e
proferiu. A pressão que exerceu sobre D. João IV, «não pedindo favor, mas justiça», ou afirmando «se no juiz
há ódio, por mais justificada que seja a inocência do réu, nunca a sentença do juiz há de ser justa».
Abundantemente citado por Anita Novinsky, Vieira argumenta, considerando «os cristãos-novos mártires do
próprio catolicismo e sujeitos a um tribunal criminoso». Este um lugar onde «os inocentes perecem e os
culpados triunfam, porque esses na boca têm o remédio e no coração o veneno».
Muitos autores descreveram magistralmente o que representou a Inquisição, bem como as perseguições
de que os judeus foram alvo em Portugal, dando expressão ao sentimento profundo do sentir do povo
português. Cito, só como exemplos, Oliveira Martins, na sua História de Portugal, ou Camilo Castelo Branco
em O Judeu. Antero de Quental considerava mesmo a expulsão dos judeus uma das causas da decadência
dos povos peninsulares. Feita em nome de Deus ou da pureza do sangue, tinha, na verdade, como grande
objetivo o seu afastamento de posições de poder e a apropriação das riquezas que detinham!
O fanatismo, a intolerância e a cegueira que a Inquisição representou só se aproximou do fim com o
poderoso Marquês de Pombal.
Recordo o facto descrito por Cecil Roth, que, na sequência de ordem ditada pelo rei D. José, de que todo o
português que tivesse sangue judeu deveria usar um chapéu amarelo, o Marquês se apresentou na corte com
três chapéus debaixo do braço. Inquirido pelo rei sobre o que pretendia fazer com eles, o Marquês respondeu,
dizendo que, obedecendo às ordens do rei, um dos chapéus era para si próprio, outro para o grande inquisidor
e um outro para sua majestade.
Este diploma, a ser aprovado, é uma demonstração prática de Uma Teoria de Justiça, de Amartya Sen: não
bastam instituições justas e pessoas justas; necessitamos de realizações justas.
O que, verdadeiramente, o Grupo Parlamentar do Partido Socialista pretende, na sequência do pedido de
desculpas apresentado ao povo judeu, em nome do Estado Português, pelo então Presidente da República
Mário Soares, em 1989, e prestando tributo ao nosso património de tolerância, universalismo e miscigenação,
é que, naquilo que está ao nosso alcance, «a planta do pé dos judeus» que têm raízes em Portugal «aqui ache
descanso», se for esse o seu desejo.
Aplausos do PS, do PSD e do CDS-PP.
A Sr.ª Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Ribeiro e Castro para apresentar o projeto de lei
n.º 394/XII (2.ª), da autoria do CDS-PP.