I SÉRIE — NÚMERO 115
74
(no mar, nas estradas, nos ares), em expansão contínua e inquietante, ou ainda com os crimes de rapto e
sequestro. (…) ou o ressurgimento dos tráficos de seres humanos através da prostituição, do tráfico de órgãos
ou do trabalho ilegal (trabalho infantil, trabalho clandestino)».
O parecer dado pelo Conselho Superior de Magistratura no âmbito deste processo legislativo de
transposição da Diretiva para a ordem interna espelha bem a expansão e internacionalização do crime de
tráfico de seres humanos entre nós, o que, deste ponto de vista, o projeto de lei n.º 427/XII (2.ª) sempre seria
de saudar.
Por outro lado, e acentuando o facto de Portugal ter ultrapassado o prazo limite de transposição para a
ordem interna da presente Diretiva, a iniciativa legislativa dos Grupos Parlamentares do PSD e do CDS-PP
teve o mérito de procurar concretizar orientações de política criminal que reclamam a articulação entre os
Estados-membros da União Europeia.
Já não posso, porém, acompanhar as soluções normativas nela consagradas.
A transposição de uma diretiva europeia para a ordem interna pode cumprir-se em toda a sua extensão, ou,
por outras palavras, cumprir todos os objetivos nela fixados, sem que se comprometam princípios
fundamentais — no caso, de Direito Penal —, em particular quando emanados diretamente da Lei
Fundamental.
O n.º 3 do artigo 2.º da Diretiva, ao referir-se às condutas que no âmbito do tráfico de seres humanos
devem ser puníveis, define um núcleo de ações que devem merecer equivalente valoração jurídico-penal no
espaço europeu. Nesse sentido, estabelece que «A exploração inclui, no mínimo, a exploração da prostituição
de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, incluindo a mendicidade, a
escravatura ou práticas equiparáveis à escravatura, a servidão, a exploração de atividades criminosas, bem
como a remoção de órgãos».
O sentido da Diretiva é, precisamente, o de harmonizar os sistemas jurídico-penais em matéria de tráfico
de seres humanos, pese embora em muitos Estados-membros, de que Portugal é exemplo, já tenham
integrado nos respetivos códigos penais a quase totalidade das condutas ali descritas.
Ora, o projeto de lei n.º 427/XII alarga — como é claramente é assumido na sua exposição de motivos —
«o âmbito da incriminação do tráfico de pessoas para qualquer tipo de exploração. O escopo da intervenção
do artigo 160.º do Código Penal deixa, assim, de estar limitado a formas de exploração específicas, que
passam a ter natureza exemplificativa».
Em conformidade, o n.º 1 do artigo 160.º passa a ter a seguinte redação: «Quem oferecer, entregar,
recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração
sexual, a exploração do trabalho, a escravidão ou a extração de órgãos: a) Por meio de violência, rapto ou
ameaça grave; b) Através de ardil ou manobra fraudulenta; c) Com abuso de autoridade resultante de uma
relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar; d) Aproveitando-se de incapacidade
psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou e) Mediante a obtenção do consentimento da
pessoa que tem o controlo sobre a vítima é punido com pena de prisão de três a dez anos.»
Optou-se, assim, pela criação de um tipo penal aberto, ampliando a punibilidade a qualquer forma de
exploração, sendo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a escravidão ou a extração de órgãos
meramente exemplificativas.
Poderia considerar-se que estas formas de exploração específicas dão ao intérprete suficiente conteúdo
concretizador dos bens jurídicos que a norma visa tutelar.
Contudo, se dúvidas houvesse quanto às dificuldades de concretização das condutas subsumíveis ao
conceito de «exploração», o parecer do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), obtido neste
processo legislativo — que aplaude esta alteração legislativa — é nesse sentido esclarecedor.
Com efeito, pode ler-se neste parecer: «Aplaude-se, pela sua assinalável relevância, a extensão a qualquer
tipo de exploração (conceito indeterminado que a doutrina e a jurisprudência deverão concretizar, tendo,
porém, como referência inultrapassável os exemplos padrão). Na redação proposta, as situações de
exploração enunciadas são meramente exemplificativas. Mas, o princípio da tipicidade penal impõe que sejam
enunciadas praticamente todos os exemplos padrão que neste momento seja possível identificar como
podendo integrar-se naquele conceito indeterminado. (…) Compreendendo que a descrição típica pode incluir
qualquer situação de exploração, impõe-se, em consonância como o que se diz na exposição de motivos e
para acautelar inabalavelmente o princípio da tipicidade, incluir no leque das situações típicas de exploração a
mendicidade forçada.