I SÉRIE — NÚMERO 22
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Cinco décadas depois, é preciso reconhecer as profundas mudanças que se verificaram na sociedade
portuguesa, com especial relevância no contexto europeu, e as consequências para a organização do nosso
território, para o quadro legal e regulamentar que o rege e para as políticas públicas no domínio dos solos, do
ordenamento do território e do urbanismo.
Cinco décadas em que as políticas implementadas não evitaram o efeito centrífugo do litoral e o efeito
centrípeto no crescimento das cidades, o despovoamento de boa parte do interior e, embora protegidos, do
ponto de vista legal, a degradação de muitos dos valores ecológicos e patrimoniais.
Num contexto de aceleração dos processos de desenvolvimento e face à necessidade de respostas a
novos desafios e a novas realidades, a reconciliação entre o uso dos solos e as preocupações sociais,
económicas e ambientais mantém-se como um forte desígnio político.
O debate de hoje não é, nessa medida, uma novidade. O que é nota de registo é a circunstância de
abordarmos, pela primeira vez, a política de solos inserida nos domínios do ordenamento do território e do
urbanismo.
Sr.ª Presidente, Sr.as
e Srs. Deputados: Com base nas iniciativas do Governo e do Grupo Parlamentar do
PCP, somos convocados para um debate sobre a forma como devemos responder à degradação dos solos e
aos riscos de desertificação, à expansão urbana desordenada e à fragmentação dos espaços naturais, à boa
gestão territorial e à complexidade da legislação e dos procedimentos de gestão territorial.
À luz da evolução de valores e de conceitos e dos constrangimentos já identificados, devemos renovar as
políticas públicas para o solo, em estreita articulação com as políticas de ordenamento do território e do
urbanismo, em torno de dois aspetos que consideramos fundamentais: salvaguardar o solo vivo como recurso
ambiental e produtivo escasso e não renovável e assegurar uma oferta programada de solo para as diferentes
utilizações, na quantidade necessária, e com as localizações adequadas à satisfação das procuras resultantes
da evolução demográfica e do desenvolvimento económico e social.
Devemos atender à multiplicidade de dimensões que o bem jurídico «solo» engloba, reconhecendo as suas
funções económica, ambiental e, particularmente, social. A função produtiva primária do solo assume especial
relevância nos dias de hoje, não só porque assistimos ao acesso condicionado aos bens alimentares e
matérias-primas essenciais e ao acréscimo dos custos da energia, mas também porque ganham peso
crescente os serviços dos ecossistemas naturais e as funções complementares em benefício do sistema
urbano. Mas o sucesso destas políticas passa, sobretudo, pela valorização da função social do solo, que vai
muito para lá do interesse público restrito e deve potenciar políticas de produção, conservação, mas também
de repovoamento e equilíbrio territorial. O grande desafio é adequar a legislação às necessidades inerentes à
função do solo, nomeadamente através da valorização de novas formas de propriedade, que promovam a sua
desmaterialização e assegurem uma melhor relação entre a forma do território e a sua estrutura fundiária, quer
do ponto de vista urbano, quer do ponto de vista rural.
É, assim, fundamental que a nova legislação dê especial atenção aos processos de formação de valor do
solo e de apropriação da renda fundiária, através da explicitação e regulação das funções do solo e dos seus
diferentes estatutos, bem como as condições mediante as quais se opera a alteração de estatuto jurídico do
solo.
Dever-se-á dar relevância às diferenças conceptuais entre o uso no solo e o uso do solo, atenta a distinção
jurídica e o caráter de reversibilidade associado ao primeiro conceito. Se atendermos ao solo rústico, por
exemplo, o mesmo deverá ser preservado nos processos de produção de solo urbanizado e o processo de
desenvolvimento rural deverá ser objeto de políticas setoriais específicas.
A renovada política de solos deve consistir em orientar e organizar o desenvolvimento urbano e rural de
forma coerente e racional e evitar as consequências perversas geradas pelo funcionamento espontâneo do
mercado, nomeadamente um enriquecimento sem justa causa do proprietário fundiário que se limita a esperar
pela valorização do seu terreno, em consequência dos investimentos da comunidade em equipamentos e
infraestruturas ou pelo planeamento urbanístico.
Sr.ª Presidente, Sr.as
e Srs. Deputados: Valorizamos a iniciativa do Governo, por sabermos que há nesta
matéria legislativa uma necessidade sentida e reconhecida de aperfeiçoamento, mas recusamos qualquer
tentativa de desconstrução do edifício legislativo e de desequilíbrio na relação institucional e na ação de
regulação entre a administração central e local.