I SÉRIE — NÚMERO 90
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Por um lado, encontrávamos o pilar da situação clínica excecional, que em todos os projetos se apresentava
como condição sine qua non para que o pedido pudesse ser realizado pelo doente e que, ainda que em termos
terminológicos distintos (em questões de pormenor), apontavam apenas para casos de doenças incuráveis e
fatais particularmente graves e penosas para o doente.
Por outro lado, encontrávamos o pilar da vontade do doente, que se apresentava como claro em todos os
projetos e que apontava para uma ideia geral de que a decisão de fazer o pedido competiria unicamente ao
doente, baseando-se numa vontade livre, voluntária e esclarecida, havendo posteriormente uma série de
momentos no procedimento subsequente a esse pedido em que o doente tinha a hipótese de confirmar ou
reiterar o seu pedido por um grande número de vezes — quatro vezes no projeto de lei do PAN e até cinco vezes
nos demais —, o que assegurava uma autenticidade e certeza dessa vontade, sendo possível, a todo o tempo,
revogar o pedido, tendencialmente sem necessidade de qualquer fundamentação ou formalidade especifica, o
que traz o fim imediato do processo em curso sem possibilidade de reabertura, ainda que com possibilidade de
novo pedido no futuro.
Esta importância crucial atribuída à vontade do doente surge também na situação prevista, expressamente
nos projetos de lei do PAN, do BE e do PS e implicitamente no projeto de lei de Os Verdes, de perda de
consciência do doente, que traz a interrupção do procedimento até eventual posterior recuperação da
consciência pelo doente, sendo que só o BE permite que o procedimento prossiga se tal estiver consagrado na
Declaração Antecipada de Vontade constante do respetivo testamento vital.
De resto, diga-se que ainda que os projetos atribuíssem uma importância crucial a esta vontade do doente,
faziam-no de modo a não absolutizar essa vontade ou valorizá-la sem quaisquer limites, colocando para o efeito
dois limites que visavam assegurar precisamente a perfeição dessa vontade e a sua expressão em termos
efetivamente livres, conscientes, aceitáveis e equilibrados.
O primeiro desses limites surgia-nos pelo primeiro pilar, por mim já referido, que exige que haja uma situação
clínica muito específica e bem delimitada que faz com que o doente não possa requerer a eutanásia ou suicídio
medicamente assistido em qualquer situação que lhe aprouver.
O segundo desses limites surge-nos pela garantia de uma intervenção médica especializada: do médico a
quem o pedido foi dirigido, de um médico psiquiatra — sendo que só nos projetos de lei do PAN e de Os Verdes
esta intervenção é obrigatória, sendo facultativa nos demais — e de um médico especialista ou de uma comissão
especializada, em várias fases do procedimento. Isto visava assegurar o completo cumprimento da lei e a
integridade do pedido e da vontade do doente, sendo que o objetivo desta intervenção especializada era deixar
claro ao doente as implicações subjacentes ao seu pedido, verificar se as exigências legais e formais do pedido
eram cumpridas e se o doente gozava da idoneidade/capacidade psíquica exigível para formular o pedido,
impedindo-se, em caso negativo, o prosseguimento do procedimento, sendo que nuns projetos admitia-se
recurso ou reavaliação e noutros não.
Note-se que o direito de objeção de consciência destes médicos estava assegurado em todos os projetos de
lei e que, uma vez concluído todo este complexo procedimento, a eutanásia ou o suicídio medicamente assistido
poderiam ocorrer em local indicado pelo doente (algo só admitido pelos projetos de lei do BE e do PS), ou
estabelecimentos de saúde públicos (só nestes segundo o projeto de lei de Os Verdes) ou privados (algo
admitido pelos demais projetos) e para o concretizar a disponibilização ou administração do fármaco letal seria
feita exclusivamente por médicos, segundo Os Verdes, por médicos com eventual auxílio de enfermeiros,
segundo o PAN, ou por médicos ou enfermeiros com supervisão médica, de acordo com o BE e o PS, conforme
os projetos de lei.
Assim, feito este breve enquadramento geral e comparativo dos quatro projetos que estiveram em discussão,
importa olhar para algumas das críticas apresentadas contra eles quer por indivíduos e organizações da
sociedade civil, nas semanas que antecederam o debate, quer pelos diversos Deputados em sede de discussão
em Plenário.
A primeira das críticas que surgiu, demonstrando uma clara desinformação e pouca seriedade intelectual, foi
a de comparar despenalização da eutanásia e do suicídio medicamente assistido (proposta pelo PAN, BE, PS
e Os Verdes) a uma eutanásia eugénica ou uma eutanásia social ou económica, dizendo-se que a aprovação
desta despenalização traria uma «licença para matar». Ora, face a esta crítica não posso contrapor senão a
minha indignação porque elas são críticas que desviam a discussão do essencial (o conteúdo dos quatro