I SÉRIE — NÚMERO 90
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rendimentos faziam-no em segurança fora do país; as mais pobres faziam-no em condições inacreditáveis, em
«vãos de escada» e por vezes morriam.
A primeira semelhança é que existe uma componente redistributiva como consequência da atual
criminalização. São os doentes de mais recursos que têm acesso a clínicas em países europeus para o suicídio
assistido e a eutanásia, ou que têm acesso a bons cuidados paliativos em hospitais privados portugueses. Os
de menos recursos têm acesso às condições que o SNS consegue dar e que não são, por razões
compreensíveis de limitações de recursos públicos, as melhores. A segunda é que, não sendo legal, não é
regulada, não havendo a distinção entre aquela que deve ser permitida e a que não deve ser. Concordo com
aqueles que afirmam que o que não deve acontecer é a sedação paliativa degenerar em eutanásia clandestina.
Pois suspeito que tal já acontece e a forma de não acontecer é aprovar e regulamentar uma lei sobre a eutanásia
e não criminalizá-la sem limites.
A quarta das críticas prende-se com a falta de legitimidade democrática da Assembleia da República para
discutir o tema, uma vez que, segundo estes críticos, nenhum dos partidos políticos que agora apresentam
projetos de lei teria colocado a questão no seu programa eleitoral ou levado a debate esta questão no quadro
da campanha eleitoral de 2015, pelo que a opinião soberana dos eleitores não teria sido auscultada.
Temos de rebater esta crítica em três pontos essenciais. Em primeiro lugar, importa sublinhar que o programa
eleitoral do PAN, apresentado no âmbito da campanha eleitoral para as eleições legislativas de 2015, propunha
trazer a eutanásia «à discussão, de modo a que se venha a definir se um/a cidadão/ã lúcido/a deve ou não, por
razões se saúde, poder decidir terminar a sua vida», prometendo fazê-lo por via da criação de fóruns de
discussão e pela abertura ao debate sobre a legalização da eutanásia em Portugal.
Sobre o sentido das palavras inseridas no programa eleitoral só o próprio PAN se pode pronunciar, mas
parece-me que, ao prometer a abertura da discussão sobre a eutanásia em Portugal por via da abertura do
debate, tal só pode ser entendido, tendo em conta que estamos perante um programa eleitoral e não um mero
manifesto ou programa político de um partido, no quadro da discussão institucional na Assembleia da República,
como órgão com competência exclusiva na matéria. No quadro institucional, a única forma que um partido tem
para lançar um debate consequente sobre este tema é precisamente o projeto de lei, tendo sido isso que o PAN
fez, sendo que as boas práticas parlamentares apontam para que, uma vez que uma iniciativa legislativa
relevante seja lançada por um partido, os restantes partidos políticos apresentem projetos alternativos que
consagrem a sua visão sobre o tema, conste ela ou não do respetivo programa eleitoral.
Em segundo lugar, importa referir que, não obstante o facto de o PAN ter colocado a questão no programa
eleitoral — assegurando, assim, de forma clara a legitimidade democrática que tanto preocupa os críticos da
eutanásia —, durante a atual legislatura, em 2016, o Movimento Cívico «Direito a Morrer com Dignidade»
entregou a petição n.º 103/XIII (1.ª) (subscrita por 8427 cidadãos, de entre os quais alguns Deputados do PS,
do BE e do PSD e até pelo atual líder do PSD) que exortava os Deputados e grupos parlamentares «a discutir
e promover as iniciativas legislativas necessárias à despenalização da morte assistida». Naturalmente, em
conformidade com o procedimento legalmente previsto, a petição mereceu uma profunda e transparente
discussão no quadro da Assembleia da República, com várias audições, culminando com a aprovação de um
relatório sobre a questão e com a discussão da petição em Plenário. Note-se, de resto, que à luz do artigo 19.º,
n.º 1, alínea c), da Lei do Exercício do Direito de Petição (Lei n.º 43/90, de 10 de agosto) um dos muitos efeitos
que este tipo de mecanismos pode desencadear, seguindo a interpretação de Jorge Miranda e Pedro Machete3,
é precisamente a possibilidade de, na sequência de todo este processo de discussão, haver a elaboração por
qualquer Deputado ou por qualquer grupo parlamentar de um projeto lei que se mostre justificado a dar resposta
à questão colocada pela sociedade civil por via de petição.
Assim, se legitimidade não houvesse pela ausência de referência ao tema nos programas eleitorais do PS,
do BE e do PEV ela foi garantida por esta importante petição e por todo o processo que lhe sucedeu, que
asseguraram um importante debate do tema na Assembleia da República (conforme, de resto, referem os
preâmbulos dos projetos de lei do PAN e do PAN).
Em terceiro lugar, é importante notar que o tema da despenalização da eutanásia mereceu um profundo
debate no plano interno do PS e do BE. Por um lado, no PS, em 2017, por proposta de Isabel Moreira e Maria
Antónia Almeida Santos, a Comissão Nacional (órgão máximo entre congressos) debateu e aprovou uma moção
3 Jorge Miranda e Pedro Machete, anotação ao artigo 52.º in Jorge Miranda e Rui Medeiros, «Constituição Portuguesa Anotada», tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2010, páginas 1026 e 1027.