I SÉRIE — NÚMERO 110
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O Sr. FilipeNetoBrandão (PS): — Assistimos de tudo durante a campanha, inclusive a reptos de dirigentes
partidários que, sempre sob a invocação do respeito pelo princípio da separação de poderes e da distinção entre
o plano judicial e o político, mais não significaram do que uma grosseira tentativa de violação daquele.
Convirá termos presente que todos os elementos solicitados pelo Ministério Público à Comissão Parlamentar
de Inquérito lhe foram prestados e que, entre tais solicitações, constou o envio de vários depoimentos prestados
à Comissão.
Que dizer, assim, das declarações da ainda líder do CDS, que pretenderia que a Assembleia da República
remetesse oficiosamente ao Ministério Público depoimentos que este não pediu — e, para mais, estão
publicamente disponíveis —, sendo certo que, se os tivesse pedido, lhe teriam sido remetidos, à semelhança
dos demais?
Que pode isso representar senão uma tentativa de ingerência ou censura ao modo como o Ministério Público
conduziu as diligências do inquérito?
«Pediu quatro depoimentos!? Está mal! O DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) é
incompetente, devia ter pedido mais!» — foi o que o CDS disse a todos quantos, e que sabe serem a
esmagadora maioria do povo português, desconhecem o modo de organização e funcionamento do sistema
judiciário, designadamente do Ministério Público.
É verdade que a acusação deduzida pelo Ministério Público, no designado processo de Tancos, se afigura
parcialmente desconforme com as conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito que aqui tramitou, bem
como com a factualidade aí apurada.
As declarações prestadas na CPI por vários depoentes, desde oficiais generais ao ex-titular da pasta da
Defesa Nacional, não permitem sustentar a factualidade que a comunicação social nos diz ter sido invocada
pelo Ministério Público na acusação formulada, apresentando-se, pois, ao que nos é dado a conhecer — a nós
que desconhecemos o que o processo criminal contém —, desconforme com aquela.
Partir, porém, dessa constatação irrefutável para a conclusão de terem sido proferidas falsas declarações no
âmbito da CPI é dar a uma acusação criminal uma natureza que a lei e a Constituição lhe recusam; é dar por
assente o que a lei e a Constituição querem que seja tido por controverso; é, inclusive, violar grosseiramente o
princípio da presunção de inocência que a Constituição e a lei conferem a todos, repito, a todos os arguidos.
É público que o ex-Ministro da Defesa Nacional, não obstante ter sido constituído arguido e acusado, contesta
veementemente a factualidade que lhe é imputada na acusação de que foi alvo.
O princípio constitucional da separação de poderes determina que competirá aos tribunais — leia-se a juízes
de direito — validar, ou não, a acusação deduzida e a factualidade subjacente.
Pretender que outrem, nomeadamente o Parlamento, se possa substituir a essa avaliação judicial, para mais
partindo do princípio da culpabilidade do agente, pode ser demagogicamente tentador, e foi-o manifestamente
na campanha eleitoral, mas não prestigia nenhum parlamentar, além de constituir grosseira violação do princípio
da separação de poderes e da presunção de inocência que a Constituição, e bem, estatui.
O princípio da presunção de inocência é um princípio basilar de um Estado de direito democrático. O líder
parlamentar do principal partido da oposição tem, aliás, especiais obrigações na defesa desse princípio, não
apenas, e já seria o bastante, pela sua formação jurídica, mas também pela sua experiência de vida.
Ser acusado não pode significar ser condenado e, em muitos casos, não significa sequer vir a ser
pronunciado. Isto é, uma acusação deduzida pelo Ministério Público pode vir a não ser validada judicialmente,
quer em sede de julgamento, quer em sede de instrução.
Partir do contrário é alimentar justicialismos populistas, é cultivar a demagogia. Numa palavra, é, parlamentar
e democraticamente, uma indignidade.
«À justiça o que é da justiça» não pode ser um mero chavão descartável à primeira aparente conveniência
política. A anterior direção do PSD já acolheu e projetou publicamente quem manifestamente desconsidera
valores elementares do Estado de direito democrático. A composição parlamentar saída destas eleições
recordar-nos-á, aliás, amiúde, tal ignomínia.
Seria bom que, ultrapassado o frenesim eleitoral, voltassem os partidos estruturantes da democracia
portuguesa a interiorizar todos os pressupostos e consequências dos princípios fundamentais plasmados na
Constituição da República. Os da separação de poderes e independência do poder judicial são dois deles. Ceder
nos princípios pode eventualmente colher dividendos temporários, mas, a prazo, é sempre a democracia que
resultará fragilizada.