I SÉRIE — NÚMERO 9
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limite aos poderes dominiais —, então o poder de ordenar assume-se como um poder essencial à subsistência
e manutenção do domínio […] O domínio do espaço marítimo nacional manifesta-se assim através de poderes
públicos que denotam supremacia e supra ordenação do Estado e cujo exercício depende exclusivamente dele.
Um dos poderes de referência dessa autoridade é o poder regulamentar, através do qual o titular do domínio
marítimo, no desempenho da função administrativa de conservação, proteção e utilização, cria regras jurídicas
de conduta que provocam a produção de efeitos jurídicos com repercussão imediata na esfera jurídica de
terceiros.» (os sublinhados são nossos).
Ora, no Decreto da Assembleia da República ora em causa, o poder de ordenar o espaço marinho resulta
muito substancialmente transferido do Estado para as regiões autónomas, registando-se que, à exceção das
matérias relativas à integridade e soberania do Estado (numa redação, aliás, que o Tribunal Constitucional
provavelmente desaconselhará, porque pouco clara e potenciadora de conflitos, como expressamente resulta
da leitura do Acórdão n.º 315/2014, in DR de 15 de maio, pág. 2857), a intervenção do Estado, na maior parte
dos casos, passará a não se revestir, sequer, de caráter vinculativo.
Vale o mesmo dizer que, em tais casos — que antevemos não serem poucos —, o Estado corre o risco de
ficar arredado de qualquer papel determinante no ordenamento e gestão do espaço marítimo em causa.
Tal como referíramos na nossa declaração de voto, aquando da votação, na generalidade, da Proposta de
Lei n.º 179/XIII/ALRAA, o reforço da participação das Regiões na gestão do mar adjacente afigurar-se-nos-ia
positivo e, por isso, então a acompanhámos.
Não ignoramos, porém, que atento o modo como o ora reapreciado Decreto da Assembleia da República n.º
59/XIV faz operar a distribuição/transferência de competências entre Estado e Regiões, dificilmente permitirá
reconhecê-lo como conforme à Constituição, razão, cremos, mais do que atendível para se justificar uma
apreciação de constitucionalidade prévia à sua promulgação.
Sobretudo, quando o Tribunal Constitucional, de modo particularmente assertivo (Ac. TC 136/2016, idem,
pág. 10755), escreve — e cito: «Afigura-se-nos, pois, que é bastante questionável a possibilidade de o Estado
abdicar do poder de ordenar o espaço marinho, transferindo o seu exercício para as regiões autónomas, ainda
que parcialmente. Nessa hipótese, ficaria despojado de um instrumento fundamental, porventura o mais
essencial, à regulação e proteção do domínio público marítimo.» (os sublinhados são nossos).
Renovando o que afirmáramos na nossa declaração de voto, aquando da votação da Proposta de Lei n.º
179/XIII/ALRAA na generalidade, muito gostaríamos de ter podido contribuir hoje para um reforço dos poderes
dos órgãos das regiões autónomas sobre o mar que lhes é adjacente. O respeito que devemos à Constituição
da República Portuguesa, e aos princípios nesta plasmados, densificados através da jurisprudência do Tribunal
Constitucional, cotejados com as soluções preconizadas no Decreto da Assembleia da República n.º 59/XIV
impedem-nos, contudo, de o poder fazer.
Amicus Plato, sed magis amica veritas.
Palácio de S. Bento, 2 de outubro de 2020.
O Deputado do PS, Filipe Neto Brandão.
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Constatando que as alterações hoje introduzidas ao DAR 59 XIV não o fazem substantivamente distinto do
texto devolvido, sem promulgação, à Assembleia da República, mantenho, coerentemente, e pelas mesmas
razões, o mesmo voto que expressei aquando da votação da proposta de lei que lhe deu origem.
Palácio de S. Bento, 2 de outubro de 2020.
O Deputado do PS, Bruno Aragão.
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