I SÉRIE — NÚMERO 46
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Luanda (1961) ou Wiryamu (1972). Por outro, a transição para o regime democrático fez-se, felizmente, com a
capacidade de perdão que impediu a perseguição dos atores do Estado Novo, fossem eles políticos, policiais e
militares ou outros. Essa decisão ajudou a coser um país dividido, embora o perdão não implique esquecimento.
Estas dúvidas legítimas são reforçadas nas diversas entrevistas que Marcelino da Mata deu em vida. A título
de exemplo, em «Anos da Guerra – Guiné 1963-1974», um documentário de José Barahona, Marcelino da Mata
não tem qualquer pudor em exprimir o seu apreço pela guerra, descrevendo sem remorsos a mutilação de
prisioneiros inimigos. Esses atos dificilmente podem ser aceites com leviandade aquando da ponderação deste
voto de pesar. Não estamos perante um cidadão que foi involuntariamente mobilizado para a guerra e que, ali
se encontrando, se confrontou com a necessidade de cometer atos que noutro cenário seriam incompreensíveis.
Há evidências suficientes para que, no mínimo, nos sintamos incapazes de poder assegurar que Marcelino da
Mata deva merecer o reconhecimento público que este voto de pesar impõe.
A rejeição deste voto também não trata de desvalorizar as nossas Forças Armadas ou os ex-combatentes,
que me merecem todo o apreço e consideração, bem como agradecimento pelos seus serviços. Estou certo de
que o seu empenho nas missões militares, independentemente das considerações que pudessem fazer sobre
elas, deve ser reconhecido. Contudo, valorizar as Forças Armadas e os seus ex-combatentes não passa por
elevar a estatuto de herói a quem, com os seus atos, possa ter manchado a própria instituição militar.
Há ainda outra razão fundamental para não me ser possível fazer este reconhecimento ao Tenente-Coronel
Marcelino da Mata, tratado como foi como símbolo do Estado Novo e agraciado, também, por razões de
propaganda nesse tempo. É sabido que a valorização de combatentes nativos fazia parte da estratégia
diplomática portuguesa, tratando o conflito armado colonial como uma agressão externa contra a vontade
desses mesmos nativos. Por essa razão, Marcelino da Mata foi, antes e depois do 25 de Abril, usado como
símbolo da apologia do nacionalismo e do fascismo, primeiro pelo Estado e depois por partidos de extrema-
direita. Não é por acaso que os partidos da extrema-direita, dentro e fora da Assembleia da República, se
apressaram a exigir honras de funeral de Estado a este combatente. Também não é por acaso que um
comentário sobre os seus atos conduziu a uma petição para a deportação de um cidadão português.
Podemos dizer que Marcelino da Mata não é responsável pela sua instrumentalização e que esta não deve
ser considerada, mas a apreciação deste voto na casa da democracia é também um ato político. O próprio
Marcelino da Mata nunca se escondeu dessa função simbólica e é justo que, com a mesma frontalidade com
que defendeu ideias que não são admissíveis à luz da Constituição da República Portuguesa, o possamos julgar
por essa sua intervenção. É por isso que não é possível esquecer que, nos dias de hoje, com uma crescente
ameaça ao sistema democrático conquistado pelo 25 de Abril, o voto de pesar a Marcelino da Mata tem também
como efeito normalizar e reinscrever na História portuguesa os agentes de uma ideia de estado totalitário que
os portugueses souberam derrubar.
Marcelino da Mata não é um herói, como não será um vilão. Terá sido sobretudo um homem, com méritos e
defeitos. Foi também vítima das suas circunstâncias, nascido pobre e iletrado, criado no seio de um conflito
militar e doutrinado por um Estado Novo que não pediu, mas defendeu afincadamente. Devemos reconhecer
que o seu contexto é determinante no decurso das suas ações, tanto as mais como as menos meritórias.
Infelizmente, não sendo possível reescrever a sua história, os seus atos de bravura não podem esconder a
complexidade da sua vida. O reconhecimento público que aqui se propõe poderá resultar numa normalização
de uma figura controversa da sociedade portuguesa, pouco consentânea com os valores comuns partilhados
nesta Assembleia da República, e sobre a qual ainda não foi possível fazer um debate sério e aprofundado.
Compreendo quem ache justo atentar apenas aos seus atos já condecorados, sendo esse um critério possível
para tomar esta decisão, ainda que não partilhe dele. Contudo, creio que a este órgão se deve exigir maior
ponderação a fim de uma decisão destas não resultar num reconhecimento apressado e para o qual não haverá
retorno.
O Grupo Parlamentar do Partido Socialista, Eduardo Barroco de Melo.
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O 25 de Abril de 1974 não foi uma revolução, foi uma festa. Devia ter havido «sangue», devia ter havido
«mortos», devíamos ter determinado bem as fronteiras para se fazer um novo País. Construímos Abril com a