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27 DE FEVEREIRO DE 1993

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declarações, a análise daquela não poderá também dissociar-se de uma apreciação relativa a estas últimas.

2 — Uma vez que é no âmbito do direito penal internacional (') que a matéria da CRTPC se inscreve, sobre ele cumpre reflexão preliminar, com o objectivo de aferir a adequação da CRTPC perante ele e, subsequentemente, perante a ordem jurídica portuguesa.

Tem o direito penal internacional conhecido nas últimas décadas um surto de expansão altamente significativo e inimaginável para muitos autores. Ele representa cada vez mais o reverso da tese já defendida segundo a qual os limites do domínio da lei coincidem com a extensão da jurisdição do Estado.

O incremento do direito penal internacional é, em boa medida, tributário da crescente circulação interestadual das pessoas, devida a causas tão díspares como os fluxos migratórios, o turismo ou a actividade profissional. E, tratando-se de factores sociológicos irreversíveis, é imperioso encontrar um sistema normativo adaptado às situações em que o crime atravessa fronteiras.

Estes princípios são indissociáveis da ideia de Estado material de direito. Cabe referir os mais importantes: dignidade do julgamento (atenta sobretudo a dificuldade de acesso à informação por parte de pessoas oriundas de um ambiente cultural e linguístico não coincidente com o do lugar do julgamento), subordinação da cooperação internacional ao respeito pelos Estados de princípios de carácter humanitário na definição das sanções penais, proibição de extradição de cidadãos nacionais e favorecimento da reinserção social dos delinquentes condenados fora do seu país de origem O-

A CRTPC é um dos raros instrumentos de direito penal internacional que o Conselho da Europa abriu à assinatura quer de Estados europeus quer de outros Estados democráticos e constitui um paradigma das preocupações a que os critérios enunciados dão corpo.

Ela visa três objectivos fundamentais: favorecer a transferência de pessoas condenadas para o seu país de origem ou de residência habitual, a fim de sofrerem aí a execução da pena; estruturação absoluta da transferência por meios processuais expeditos; subordinação da transferência ao acordo entre os chamados Estados «de condenação» e «de execução» (3).

3 — A CRTPC mostra-se acolhedora de um entendimento correcto do seu principal escopo, a reinserção social. Este não é aqui encarado como um princípio absoluto, cedendo perante outras considerações, à cabeça das quais avultam razões de ordem pública. O direito penal reconhece ao delinquente a liberdade de não se reinserir, o direito à persistência na marginalidade como atitude pessoal também durante o tempo de execução da pena. Além disso, o juízo sobre a bondade da reinserção leva a equacionar o problema da legitimidade do Estado para a introduzir no acervo das suas funções. Só a partir do momento em que existam condições para bem reintroduzir no convívio social deverá considerar-se legitimado para

(') Entende-se por direito penal internacional aquele em que tessália um aspecto internacional do crime, resulte este da nacionalidade do delinquente, da vitima ou do lugar da prática do facto punível.

0) Cf. o artigo 33° da Consumição da República Portuguesa (CRP).

(') Já anteriormente a Convenção Europeia sobre o Valor Internacional dos Julgamentos Repressivos, de 28 de Maio de 1970. pretendera a mesma finalidade, mas a lentidão do processo aí previsto votou-a ao fracasso: poucos foram os Estados a ratificá-la.

tanto (4). E esse juízo sobre a idoneidade do Estado é tributário da qual outro que se faça sobre as condições sociais que lhe hão-de presidir. Deverão ser as de um Estado de direito, aberto aos valores do pluralismo e da democracia e, no que ao direito penal respeita, aceitador do princípio da aplicação criminal como ultima ratio da recusa de penas degradantes ou desumanas, da proporcionalidade entre o crime e a pena aplicável, da bondade das condições de cumprimento desta (')•

As disposições contidas no texto da Convenção evidenciam estas preocupações.

Assim:

Embora sustentando o princípio do consentimento do condenado, ela ressalva a impossibilidade de transferência para país que produza nova sentença, transformando a pena aplicável noutra mais grave (6);

Confere aos Estados a possibilidade de definirem o entendimento de nacionalidade para efeito de Convenção, o qual poderá circunscrever-se ao direito intemo ou ser alargado a «residentes habituais» e «apátridas», com implicações sobre o espectro de pessoas transferíveis (artigo 3.°, n.°4);

Abre a possibilidade de o Estado de execução apreciar a pena por uma de duas vias: a da sentença reconhecedora da condenação ou a de sentença confirmativa da execução. Em qualquer dos casos, ao deliquente será sempre dada a notícia da situação jurídica de que virá a ser destinatário (artigo 9.°).

, 4 — A questão fulcral a apreciar neste contexto não se coloca, assim, tanto no plano dos princípios e regras gerais da CRTPC, mas dos domínios em que ela exige uma articulação mais profunda com a ordem jurídica portuguesa.

Foi já dito (cf. nota 6) que o sistema de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e o Código Penal de 1982 se situam entre os mais garantísticos da Europa A lei portuguesa concretiza o princípio rector da dignidade da pessoa humana por via de uma concretização normativa que

(4) Está-se longe da teoria penal clássica de Kant e Fenerbach, que negavam ao Estado o direito a promover a reinserção social, por representar unia intervenção na personalidade, ofensiva da «ideia do humano». Mas o facto de se reconhecer ao Estado esta possibilidade de exercer influência preventiva sobre o infractor não í isenta de reparos. É que a reinserção social só ganha sentido se a sociedade estiver «em ordem». A adaptação a uma sociedade espúria exprime um absurdo. Isto envolve um juízo de valor sobre o meio de reinserção, e a Convenção leve-o presente ao afirmar-se aplicável a países democráticos (cf. Roxin, «Sentido y limites de la pena estatal», in Problemas Básicos dei Derecho Penal. Madrid. 1976. pp. 17-20).

(*) A CRP verte estes princípios, entendidos como decorrentes da dignidade da pessoa humana (artigo 1.°) e densificados na lei fundamental com um apuro e grau de profundidade que se sublinham no direito comparado. Cf. sobretudo os artigos 29.° (princípios da legalidade, irTectroactividade da lei penal e do non bis in idem), 30.° (proibição de penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou duração ilimitada ou indefinida), 31.° (Habeas corpus). 32° (garantias processuais penais) e 33° (definição rigorosa das condições de extradição e da expulsão).

A análise do texto da CRTPC demonstra à saciedade que ela se admite aplicável em Estados não vinculados aos mesmos princípios, o que tornaria altamente problemática a sua assinatura por Portugal, desde que não fossem definidas apertadas condições acerca do cumprimento de pena no estrangeiro por cidadão transferido de Portugal.

(*) Cf. o artigo 10°, sobre a continuação da execução: ela não pode agravar a natureza ou duração da sanção. E o caso de conversão, da condenação (artigo 11.°): também não pode agravar a situação penal do condenado. Isto tem de entender-se extensivo às condições de cumprimento da pena.