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II SÉRIE-A — NÚMERO 36

PROJECTO DE LEI N.e 463/VI

(ALARGA A TODOS OS CIDADÃOS A LEGITIMIDADE PARA RECORRER CONTENCIOSAMENTE DE CERTAS CATEGORIAS DE ACTOS DAS ADMINISTRAÇÕES CENTRAL, REGIONAL E LOCAL)

Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.

I — Relatório

1 — O Partido Socialista apresentou na Assembleia da República o projecto de lei n.° 463/VI, com o qual alarga a acção popular à fiscalização contenciosa de actos administrativos «de grande melindre para a manutenção de padrões de legalidade, isenção e imparcialidade» que considera raramente ser submetidos a exame judicial pela aplicação das regras tradicionais de legitimidade. É assim que qualquer cidadão, fazendo prova da qualidade de eleitor ou contribuinte, «tem legitimidade [sic] para impugnar contenciosamente, com fundamento em ilegalidade, os actos das administrações central, regional e local:

a) Que adjudiquem empreitadas, fornecimento de bens e serviços, concessão de exclusivos, obras e serviços públicos;

b) Que concedam a entidades privadas, individuais ou colectivas, subsídios, subvenções, ajudas, incentivos, donativos, bonificações, isenções e outros benefícios fiscais, perdões e dilações de dívidas, indemnizações cujo valor não tenha sido fixado judicialmente ou outros benefícios equi-valentes;

c) Que aprovem doações de bens do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias a pessoas singulares ou colectivas privadas;

d) Que concedam autorizações ou licenças, ou as modifiquem».

2 — O propósito desta iniciativa legislativa é certamente louvável e de aplaudir, embora se possam colocar graves dúvidas sobre o meio escolhido para o alcançar. Há que, desde logo, referir que, com a enorme extensão dada à acção popular, é pertinente suscitar a questão de saber se esse alargamento não representa o reconhecimento da ineficiência da acção do Ministério Público, da acção pública nesse sector. Por outra parte, a eliminação do pressuposto processual legitimidade num vasto sector permite um uso malicioso do meio processual recurso em actos de duplo efeito, em que as partes que se considerem prejudicadas prefiram ocultar-se sob a anodina máscara do quivis de populo.

3 — Mas a questão mais importante que é posta pelo projecto de lei diz respeito à orientação fundamental a seguir em matéria de fiscalização contenciosa da Administração: optamos por regressar à prevalência de um controlo externo e de legalidade realizado por órgãos, independentemente, ou caminhamos, como o inculca a Constituição, para uma verdadeira jurisdição administrativa, aproximando-nos cada vez mais do modelo tipificado pela Verwaltungs-gerichtsordnung de 1960?

4 — A evolução registada na Europa, primeiro na Alemanha, depois na Itália e, com as revisões de 1982 e 1989, em Portugal, é no sentido de uma jurisdição administrativa mais próxima, embora com ressalva da sua especificidade,

de jurisdição civil do que da justiça penal. Tal evolução, testemunhada, na Alemanha, por um Ule ou por um Schmitt Glaeser e, em Itália, por um Nigro ou um Caianiello, traduz o abandonar da concepção do acto administrativo como o alfa e o ómega de toda a actividade administrativa e a aceitação da relação jurídico-administrativa como o elemento definitório da mesma, a aceitação da diminuição das prerrogativas da Administração, a das consequências da proliferação das pessoas colectivas públicas e do aumento da sua diversidade, e a maior protecção dos particulares em termos similares aos do direito privado. O reforço do controlo, do latim contra rotulus, através da função contre role, filia-se na velha ideia do processo feito a um acto de Laferrière e de Hauriou, em que o particular é ainda um ministro público. Marcello Caetano, ainda que com uma construção balanceada, representa entre nós esta última concepção, que foi dogmaticamente rejuvenescida, em Itália, pelos trabalhos de Enzo Capaccioli.

A Constituição de 1976, ao consagrar o critério da relação jurídico-administrativa como elemento definitório da jurisdição administrativa (artigo 214°, n.° 3), ao dar aos direitos, liberdades e garantias uma força jurídica de aplicação imediata e vinculativa (artigo 18.°, n.° 1) e ao consagrar, a par dos recursos anteriores de impugnação, as acções para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido (artigo 268.°, n.° 5), orienta-se claramente no primeiro sentido com a ressalva importante e justificada das situações de interesse difuso previstas no artigo 52.°, n.° 3, da lei fundamental. O projecto agora em análise escolhe a segunda via.

5 — Nesta matéria delicada não cabe ao relator formular juízo de valor para que só estará legitimado quando participar na discussão na qualidade de simples Deputado, mas compete-lhe chamar a atenção para o significado da opção tomada se o projecto se vier a transformar em lei. É por isso que importa referir que a indisponibilidade dos direitos subjectivos públicos e dos interesses legítimos que a acção popular inevitavelmente acarreta passa a ter, de acordo com o projecto de lei, um âmbito mais vasto.

E evidente que é possível construir a acção popular com um controlo, com um objecto do processo diferente da acção ou recurso de particular, aproximando-a da acção pública e diminuindo os inconvenientes da «publicização» de situações privadas, mas essa aproximação processual da acção poçular à acção pública dá ainda mais força à dúvida sobre a justeza e utilidade da duplicação destes dois meios: a acção política e a acção popular. Não devemos, aliás, esperar, que a experiência já secular sobre o uso de acção popular substantivo ou correctivo ao nível da administração local mostre que só foi usada quando o acto popular tenha um interesse próprio em agir...

6 — Os objectivos visados pelo projecto de lei poderiam ser alcançados por outras vias. A título exemplificativo mencionamos a possibilidade de um recurso hierárquico ou de uma reclamação por qualquer cidadão ou por um círculo alargado de cidadãos (legitimidade alargada). Uma outra hipótese seria a de formalizar, dando-lhe uma tramitação processual adequada, a queixa do Ministério Público com vista a fazer desencadear a acção pública, com possibilidade de recurso hierárquico em caso de recusa; um outro aspecto a considerar seria a possibilidade de alargar a legitimidade aos terceiros no caso das acções em matéria de interpretação, validade e execução de contratos administrativos, modificando o artigo 825." do Código Administrativo.