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27 DE MARÇO DE 1998

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a técnicas de reanimação, aptas a manter artificialmente as funções cardiocirculatória e respiratória.

Uma regulamentação da verificação da morte com tal alcance encontra-se em legislações de países juridicamente avançados. Por exemplo: na Itália (Lei n.° 578, de 29 de Dezembro de 1993), na França (artigos R. 671-7-1 e R. 671-7-2 do Code de la Santé Publique, aditados pelo Decreto n.° 96-1041, de 2 de Dezembro de 1996), na Suíça (Directives sur la definition et le diagnostic de la mort, emanado da Académie Suisse des Sciences Médicales, em 25 de Janeiro de 1969) e nos Estados Unidos da América (The Uniform Determination of Death Act).

Entre nós o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no parecer n.° 10/CNECV/95, propôs a adopção de uma técnica legislativa similar. Em concordância com algumas das leis estrangeiras citadas (de modo exemplar a lei italiana, «a morte identifica-se com a cessação irreversível de todas as funções cerebrais», artigo 1.°), o CNECV, por um lado, propõe que a lei portuguesa adopte como critério da morte o critério da morte cerebral — «o único aceitável» e «hoje praticamente universal» (n.0i 5 e 6) —, isto é, que a lei defina a morte como cessação irreversível das funções do tronco cerebral. Comprovada com segurança a ausência destas funções e a irreversibilidade de tal estado — prova que depende das leges artis médicas e dos processos técnicos pertinentes —, deverá dar-se a morte por verificada, mesmo que o corpo continue a cumprir mecanicamente as funções cardiocirculatória e respiratória por força dos instrumentos e técnicas de reanimação artificial. Por outro lado, o CNECV é de parecer que é «exigível no plano ético que esse critério seja usado univocamente na legislação, e não apenas no respeitante a transplantações» (cf. conclusão 6). A morte cerebral, em suma, deveria equivaler, segundo a lei, à morte íout court.

A avaliar pelo que diz na exposição de motivos, o Governo pretenderia, seguindo esta linha de pensamento, definir um só critério material de verificação da morte, válido para todos e quaisquer casos. Pergunta-se, porém: terá conseguido tal intento?

4 — Para a resposta o preceito crucial a ter em conta é o n.° 3 do artigo 2.° da proposta de lei, assim redigido:

A verificação da morte baseia-se, se outros não houver mais adequados, nos critérios de verificação da cessação irreversível das funções cardiocirculatória e respiratória ou da cessação irreversível das funções do tronco cerebral, morte cerebral, aplicável nos casos de sustentação artificial das funções cardiocirculatória e respiratória.

É patente no texto — e mais claramente ainda se o conjugarmos com o n.° 4 do artigo 3.° da proposta — que o Governo hesitou, não levando até ao fim o intento pré-anun-ciado na exposição de motivos. Manteve a dualidade dos critérios materiais da morte hoje acolhidos na ordem jurídica— o critério da paragem persistente e irreversível das funções cardiocirculatória e respiratória (critério tradicional) e o critério da cessação total e irreversível das funções do tronco cerebral (critério adoptado para efeito da colheita de órgãos e tecidos humanos pela Lei n.° 12/93, de 22 de Abril, e explicitada na declaração da Ordem dos Médicos, Diário da República, 1.º série-B, de 11 de Outubro de 1994). Além disso, o n.° 3 do artigo 3.° da proposta de lei não clarifica conceitos essenciais, deixando amalgamados, por exemplo, o critério material da morte (ou critérios) — como diz o artigo 1.° da mencionada lei italiana, a definição da mor-

te — e os meios e processos técnicos da sua constatação em concreto. Por outro lado, o passo «se outros não houver mais adequados» é uma pura inutilidade: nada prescreve normativamente em virtude da sua total indeterminação e, depois, apenas repete a afirmação trivial de que a evolução das ciências e o progresso técnico podem, a todo o momento, alterar os dados da questão. É por isto mesmo que a proposta de lei, seguindo a Lei n.° 12/93 e a lição do direito comparado (a determination of death must be made in accordance with medicai standards, lê-se no Uniform Determination of Death Act, USA), incumbe a Ordem dos Médicos de definir, manter actualizados e divulgar os critérios técnicos e científicos da verificação da morte. O passo em apreço é, pois, uma excrecencia no próprio contexto da proposta de lei.

5 — Cumpre notar, por fim, que a proposta de lei n.° 104/ VII adopta uma solução manifestamente mais governamentalizada do que a seguida pela Lei n.°,12/93, no ponto que respeita à competência para a enunciação, actualização e divulgação dos standards médicos relativos à verificação da morte.

Com efeito, a Lei n.° 12/93 confere à Ordem dos Médicos competência plena para estabelecer em definitivo as directivas a observar no acto de verificação da morte, ouvido o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. O bastonário apenas tem de comunicar o texto aprovado pela Ordem ao Ministério da Saúde para efeito da sua publicação no Diário da República, 1.° série. Desta maneira, a Lei n.° 12/93 respeita, neste domínio, a autonomia da comunidade médica perante a comunidade política (especificamente perante o Governo) — à semelhança do que acontece na generalidade dos países comparáveis a Portugal. O caso neste ponto exemplar é, porventura, o da Suíça: as Directives sur la definition et Je diagnostic de la mort (1969) relevam da autonomia normativa da Académie Suisse des Sciences Médicales — e não do poder regulamentar, seja das autoridades federais seja das autoridades cantonáis.

Ora, a proposta de lei n.° 104/VII recusa, ao fim e ao cabo, à Ordem dos Médicos competência normativa para deliberar sobre os processos e critérios técnicos e cietifi-cos a observar no acto de verificação da morte. Embora diga no n.° 2 do artigo 2.° que «cabe à OM definir», o artigo 4.° logo esclarece que o regulamento elaborado pela OM não pqssuirá eficácia normativa própria, pois que fica sujeito à aprovação do Ministro da Saúde, sendo este membro do Governo quem decide em definitivo, após ouvir o CNECV. Aliás, um regulamento da importância ética e jurídica deste, em vez de ser publicado na I . série do Diário da República, como prescreve a Lei n.° 12/93, passará a ser, surpreendentemente, publicado na 2° série do Diário da República (artigo 4.° da proposta de lei)!

A verdade é que a Ordem dos Médicos e o' Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida exibem uma excelente colaboração no processo de elaboração das directivas previstas no artigo 12." da Lei n.° 12/93. Perante um primeiro documento da Ordem dos Médicos, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, reconhecendo embora que não lhe competia «pronunciar-se sobre aspectos estritamente técnico-cientificos do texto», foi de parecer que ele não corresponde inteiramente ao que o legislador teve em vista com o citado artigo» (6/CNECV/94). A Ordem dos Médicos, tomando em conta esta observação, reelaborou o texto inicial e submeteu o segundo documento ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, o qual deliberou, então, «que nenhumas reservas lhe oferece a nova formulação do parecer da Ordem». Daí a declaração