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3749 | II Série A - Número 091 | 06 de Maio de 2003

 

dotando as mulheres de personalidade jurídica, anula a instituição matrimonial do Antigo Regime, instituindo o casamento civil e, pela Lei de 20 de Setembro de 1792, o divórcio: "a faculdade de divórcio resulta da liberdade individual, cujo compromisso indissolúvel seria a sua perda". De acordo com a legislação francesa, o casamento, porque concebido numa base estritamente contratual, pode ser rescindido pela vontade concordante dos cônjuges, maiores de 25 anos, após dois anos de união, ou seja, por divórcio por mútuo consentimento, consagrado como gratuito e declarado no prazo de dois meses, depois de consulta de uma assembleia de família. A lei consagra igualmente o divórcio litigioso (sur demande), admitindo 40 causas, a "incompatibilidade de humor" e "sete motivos determinados" nomeadamente a demência, crimes ou sevícias, a dissolução de costumes, o abandono do cônjuge durante dois anos, a emigração.
Esta legislação tão audaciosa, que somente na década de 70 do século XX encontra equivalente em reformas da legislação civil na Europa, é anulada pelo Código de Napoleão, que restabelece, na prática, a indissolubilidade do matrimónio "considerada não somente como um ideal, mas como uma regra cuja derrogação só se admite em casos muito excepcionais" (Tavares, José, Os princípios fundamentais do Direito Civil, Vol. I, Coimbra, Ed. 1922, pág. 743). Esta filosofia restritiva fundamentará a maior parte dos códigos civis europeus até meados do século XX.
Em Portugal, a dessacralização e consequente secularização do casamento emerge no contexto do liberalismo, suscitando polémicas em que se distinguem Alexandre Herculano e o Visconde de Seabra. Vinga a concepção mais tradicionalista, influenciada pelo Código Napoleónico, no Código Civil de 1867, que define o casamento como "um contrato perpétuo feito entre duas pessoas de sexo diferente, com o fim de constituírem legitimamente a família" (artigo 1056.º), e estabelece o casamento católico a par do casamento civil: "Os católicos celebrarão os casamentos pela forma estabelecida na igreja católica. Os que não professarem a religião católica celebrarão o casamento perante o oficial do registo civil, com as condições e pela forma estabelecida na lei civil" (artigo 1057.º do Código Civil de 1867). Porém, o Código Civil de 1867 não resulta nem gera pacífica aceitação e, em 1900, o Deputado conservador Reboredo Sampaio apresenta ao Parlamento um projecto de lei sobre o divórcio que, no entanto, será recusada.
Só em 1910, o regime republicano, atendendo a fortes reivindicações das feministas da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, entre as quais se destaca Ana de Castro Osório, institui o divórcio, consagrando o casamento como contrato em que se mantém "a presunção de perpetualidade, sem prejuízo da sua dissolução por divórcio" (artigo 2.º do Decreto-Lei de 3 de Novembro de 1910). Consagra-se, assim, o divórcio por mútuo consentimento e o divórcio litigioso, estabelecendo como suas causas legítimas: o adultério da mulher; o adultério do homem; a condenação definitiva de um dos cônjuges a qualquer pena maior; as sevícias de origens graves; o abandono do domicílio conjugal por tempo não inferior a três anos; a ausência sem notícias, por tempo não inferior a quatro anos; a loucura incurável quando decorridos, pelo menos, três anos sob a sua verificação por sentença passada em julgado; a separação de facto livremente consentida, por 10 anos consecutivos, o vício inveterado do jogo de fortuna ou de azar; a doença contagiosa reconhecida como incurável, importante aberração sexual.
A mesma lei, numa lógica de separação da Igreja do Estado, consagra o casamento civil como o único válido, e obrigatório, estabelecendo-se que, a partir de Fevereiro de 1911, os casamentos religiosos só poderão celebrar-se com a apresentação do documento comprovativo da celebração do casamento civil.
A doutrina corporativa do Estado Novo fundamentando-se na trilogia de "Deus, Pátria e Família", repudia a visão de simples contrato de direito, impondo uma concepção social do casamento como uma das mais importantes instituições social legitimando a intervenção do Estado na sua regulamentação. O casamento é definido como integrante da família já que esta como base social do regime, território à escala micro-social do poder de chefe, consistia "no casamento e na filiação legítima" (Artigo 13.º da Constituição de 1933).
A Concordata celebrada com a Santa Sé, a 7 de Maio de 1940 (Decreto-Lei n.º 30615, de 25 de Julho) consagra, a par do casamento civil, o casamento celebrado pela Igreja, segundo as leis canónicas, exclusivamente por elas regido, sujeito ao princípio da indissociabilidade. Criam-se, assim, dois regimes matrimoniais distintos, sendo apenas um, o civil, passível de divórcio. No entanto, a partir de 1946, é nítido o declínio da taxa de divórcios, quer porque a maioria da população portuguesa mantém a celebração matrimonial tradicional católica quer porque a doutrina e o discurso corporativistas estigmatizam intensamente o divórcio. A vigência da Concordata originará situações de ruptura conjugal não reconhecidas, mas evidentes na subida das separações judiciais de pessoas e bens e na imposição da ilegitimidade dos filhos das novas uniões irregulamentáveis pela lei. O Código Civil de 1966 impõe novas restrições, impedindo o divórcio por mútuo consentimento, em vigor desde a I República, aos casados civis.
A dimensão social das consequências da legislação do Estado Novo toma visibilidade depois do 25 de Abril de 1974. Dois meses após a revolução, o Movimento Pró-Divórcio, existente desde 1965, entrega ao governo provisório 51 000 assinaturas às quais se acrescentam mais 50 000, reclamando a revogação da cláusula da Concordata e do articulado do Código Civil impeditivos da dissolução dos casamentos católicos. Na sequência de um vasto movimento social pelo divórcio, em Maio de 1974, com a rectificação do protocolo adicional à Concordata e o consequente Decreto-Lei n.º 261, retoma-se a unidade do regime matrimonial da legislação da I República, igualando o casamento católico e o casamento civil e admitindo o divórcio por mútuo consentimento e o divórcio litigioso. O protocolo adicional à Concordata, que veio permitir o divórcio civil para os católicos, foi assinado pelo Vaticano a 13 de Fevereiro de 1975.
O sistema português, à semelhança de outros sistemas europeus, nos quais se verificam reformas na mesma década, caracteriza-se como "sistema misto", de compromisso entre o "divórcio-sanção" e o divórcio constatação da ruptura do casamento ou "divórcio-remédio". As alterações de 1975 não contêm ainda a amplitude da legislação republicana. Porém, o direito começa lentamente a reflectir as novas vivências do casamento e da família, consagrando um e outra como realidades distintas, ainda que em íntima conexão. Exemplo desta perspectiva moderna é o facto de, na Constituição de 1976, só a família ser objecto de garantia constitucional, não se enunciando o mesmo princípio de protecção para o casamento limitado pela Constituição a um direito individual fundamental.