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4433 | II Série A - Número 110 | 04 de Julho de 2003

 

nacionalidade portuguesa a filhos de estrangeiros quando estes (os pais) estão em condições para serem considerados portugueses. A situação tenderá agravar-se visto que a lei de estrangeiros tem evoluído no sentido de dificultar o acesso à autorização de residência. Actualmente, cerca de 45% dos imigrantes legais não têm autorização de residência mas, sim, autorização de permanência ou visto de trabalho, e estes só terão acesso a autorização de residência após cinco ou três anos consoante possuam, respectivamente, autorização de permanência ou visto de trabalho e se conseguirem a sua sucessiva renovação. Os mecanismos de segregação com base no país de origem dos pais tenderão a ser, assim, cada vez mais fortes.
O constitucionalista Vital Moreira teceu recentemente fortes críticas à actual lei da nacionalidade. Num artigo de opinião publicado na edição de 7 de Janeiro de 2003 do Jornal Público considera que a actual lei da nacionalidade tem dois efeitos nocivos. Por um lado, "permite manter artificialmente como portugueses, com os direitos inerentes (incluindo direitos eleitorais), pessoas que não têm a mínima ligação a Portugal, só porque os pais (ou eles mesmos, chegando à maioridade) viram alguma razão, sentimental ou interesseira, na manutenção da nacionalidade" e, por outro, "mantenham como estrangeiros pessoas que nasceram no país, que sempre cá viveram, que nunca conheceram outro país, que cá foram escolarizadas, que se sentem tão portuguesas como quaisquer outras e, sobretudo, que não têm nenhuma relação com outro país, incluindo o país (ou países) dos seus progenitores". Vital Moreira defende que "a nacionalidade não deve continuar a ser uma questão de herança de sangue" e que "não pode depender da situação dos seus progenitores, desde logo por uma razão de igualdade". Advoga, por isso, o reconhecimento automático da "nacionalidade portuguesa a todas as pessoas nascidas no país, incluindo os filhos de estrangeiros estabelecidos em Portugal, salvo, portanto, os que tenham nascido ocasionalmente aqui".
O critério do ius sanguinis está assente, antes de mais, na ideia de nação homogénea do ponto vista cultural e numa concepção étnica de pertença, mais do que numa concepção política de pertença. Trata-se de uma concepção que, partindo de uma lógica de não contaminação da cultura nacional, acaba por fomentar a segregação institucional e, consequentemente, social.
A análise comparada dos quadros legislativos sobre direito de nacionalidade permite a identificação de opções diversificadas. Países com uma forte tradição de imigração, como os Estados Unidos da América ou a França, têm uma legislação baseada na tradição do chamado "direito de solo". Na França o princípio do direito de solo foi introduzido em 1889, tendo, por isso, uma longa tradição. Até 1993 um filho de estrangeiro que tivesse nascido em território francês acedia à cidadania francesa, embora só ao atingir a maioridade, com vista ao exercício de cidadania política. Mesmo as alterações introduzidas pelo governo conservador de então não impediam o acesso à cidadania francesa pelas segundas gerações de imigrantes; apenas impunham um mecanismo de manifestação de vontade. O espírito inicial da lei acabou por ser reposto em 1998, com a mudança de governo.
A cláusula de cidadania da 14.ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos assume que "todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde residem", adoptando, assim, o princípio do ius soli desde 1868.
A Alemanha, um país onde até 2000 vigorava o princípio do ius sanguinis, evoluiu no sentido de introduzir o direito à nacionalidade alemã pelas segundas gerações de imigrantes e de reduzir o tempo de residência exigido para aceder à nacionalidade alemã (de 15 para oito anos). Aos 18 anos o jovem tem o direito a escolher entre a nacionalidade alemã e a dos seus progenitores. Tratou-se de uma evolução positiva no sentido da integração dos imigrantes, embora o acesso à nacionalidade alemã pelas segundas gerações de imigrantes dependa do número de anos de residência dos pais, o que constitui um constrangimento ao princípio do direito de solo.
Portugal é, hoje em dia, um país de imigração, pelo que as limitações do modelo actualmente em vigor tornaram-se mais visíveis e as suas consequências ganharam dimensões preocupantes. A marcada guetização verificada entre os descendentes de imigrantes é, talvez, a expressão mais clara do que pode ser o resultado da denegação de direitos: viram os pais a trabalhar arduamente no nosso país, mas com uma vida miserável, muitas vezes na clandestinidade; nasceram no nosso país, mas mais tarde nunca viram reconhecida a nacionalidade portuguesa; cresceram no nosso país, mas viram-se excluídos de uma escola e de uma sociedade incapaz de permitir o desenvolvimento do sentimento de pertença. Os imigrantes e os seus descendentes (que não são imigrantes, mas são percebidos como tal) são encarados nos países de acolhimento como alguém que não lhes pertence e que tem uma terra de origem à qual podem ou devem voltar. Na mesma lógica, é esperado que o emigrante esteja de passagem no país de acolhimento e que queira ou deva voltar.
Este tipo de concepções tem estado subjacente a políticas de imigração que só fomentam processos de guetização, que não se resumem, de facto, à lei da nacionalidade - os Estados Unidos da América são exemplo da coexistência de fenómenos de guetização com base em origem étnica ou nacional e de uma lei de nacionalidade baseada no princípio do ius solis. Apesar de se basear numa concepção de melting pool de raiz multicultural (mais do que intercultural) - a introdução da 14.ª Emenda teve, aliás, o propósito de reconhecimento de direitos de cidadania a americanos negros, cortando, assim, com uma tradição de escravatura -, a verdade é que existem fenómenos de territorialização da etnicidade. Um dado interessante é o facto das estatísticas oficiais fazerem referência a afro-americanos, incluindo terceiras ou quartas gerações de descendentes de escravos, hispânico-americanos e latino-americanos. Por outro lado, uma política de controlo de entradas fortemente restritiva tem contribuído para processos de clandestinização de imigrantes.
Mas as restrições colocadas ao direito a serem reconhecidos como portugueses são factor de exclusão. Muitos daqueles que pertencem às chamadas "segundas gerações de imigrantes", principalmente no que diz respeito a imigrantes provenientes das ex-colónias, não se sentem, por exemplo, cabo-verdianos/as ou angolanos/as (ou uma outra qualquer nacionalidade de origem dos pais), mas também não são reconhecidos/as como portugueses/as. Vivem, por isso, em autênticas "ilhas" urbanas relativamente às quais lhes é permitido desenvolver sentimentos de pertença. Não têm verdadeiramente liberdade para construir a sua própria identidade, o que constitui um elemento importante de segregação social.