O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

0018 | II Série A - Número 098 | 30 de Março de 2006

 

Exposição de motivos

"O tema do divórcio é áspero, tem arestas. Sugere mal-estar, sofrimento. Representa o oposto da ideia positiva associada ao enamoramento e à paixão. Significa o fim de uma promessa, de um projecto, da partilha de um ciclo de vida. Julgo que ninguém duvida de que os processos de ruptura conjugal são emocionalmente dolorosos" (Anália Cardoso Torres, Divórcio em Portugal, Ditos e Interditos - Uma análise sociológica, Celta Editora, 1996, pág. 1).
Inseparável da evolução da concepção sócio-jurídica do casamento e da concepção jurídica da família em que aquela radica, o direito ao divórcio é modernizado e ganha nova dimensão com a filosofia das luzes e inscreve-se, legalmente, na sua expressão política, na Revolução Francesa. Esta inscrição inicia um processo radical de transformação da perspectiva de conjugalidade. Assim, a análise sociológica e jurídica do divórcio postula necessariamente a análise do casamento.
Historicamente, na generalidade dos países europeus, a doutrina do casamento é enformada pelo direito romano que o concebe numa base contratualista. "As núpcias são a união do homem e da mulher, um consórcio de toda a vida: uma comunhão de direito divino e humano" (Digesto, 23, 2.1). É somente no século XVI que se acentua a concepção religiosa do casamento, com o Concílio de Trento (1545-1563) a impor-lhe o princípio da sacramentalidade, que a reforma protestante negará retornando à natureza consensual primeira.
Mas o processo de secularização do casamento, com a intervenção directa do Estado em termos legislativos, inicia-se em França, que emerge da revolução 1789, o qual, dotando as mulheres de personalidade jurídica, anula a instituição matrimonial do antigo regime, instituindo o casamento civil e, pela Lei de 20 de Setembro de 1792, o divórcio: "a faculdade de divórcio resulta da liberdade individual, cujo compromisso indissolúvel seria a sua perda". De acordo com a legislação francesa, o casamento, porque concebido numa base estritamente contratual, pode ser rescindido pela vontade concordante dos cônjuges, maiores de 25 anos, após dois anos de união, ou seja, por divórcio por mútuo consentimento, consagrado como gratuito e declarado no prazo de dois meses, depois de consulta de uma assembleia de família. A lei consagra igualmente o divórcio litigioso (sur demande), admitindo 40 causas, a "incompatibilidade de humor" e "sete motivos determinados", nomeadamente a demência, crimes ou sevícias, a dissolução de costumes, o abandono do cônjuge durante dois anos e a emigração.
Esta legislação tão audaciosa, que somente na década de 70 do século XX encontra equivalente em reformas da legislação civil na Europa, é anulada pelo Código de Napoleão, que restabelece, na prática, a indissolubilidade do matrimónio "considerado não somente como um ideal, mas como uma regra cuja derrogação só se admite em casos muito excepcionais" (Tavares, José, Os princípios fundamentais do Direito Civil, Vol. I, Coimbra, Ed. 1922, pág. 743). Esta filosofia restritiva fundamentará a maior parte dos códigos civis europeus até meados do século XX.
Em Portugal a dessacralização e consequente secularização do casamento emerge no contexto do liberalismo, suscitando polémicas em que se distinguem Alexandre Herculano e o Visconde de Seabra. Vinga a concepção mais tradicionalista, influenciada pelo Código Napoleónico, no Código Civil de 1867, que define o casamento como "um contrato perpétuo feito entre duas pessoas de sexo diferente, com o fim de constituírem legitimamente a família" (artigo 1056.º), e estabelece o casamento católico a par do casamento civil: "Os católicos celebrarão os casamentos pela forma estabelecida na Igreja Católica. Os que não professarem a religião católica celebrarão o casamento perante o oficial do registo civil, com as condições e pela forma estabelecida na lei civil" (artigo 1057.º do Código Civil de 1867). Porém, o Código Civil de 1867 não resulta nem gera pacífica aceitação e, em 1900, o Deputado conservador Reboredo Sampaio apresenta ao Parlamento um projecto de lei sobre o divórcio que, no entanto, será recusada.
Só em 1910 o regime republicano, atendendo a fortes reivindicações das feministas da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, entre as quais se destaca Ana de Castro Osório, institui o divórcio, consagrando o casamento como contrato em que se mantém "a presunção de perpetualidade, sem prejuízo da sua dissolução por divórcio" (artigo 2.º do Decreto-Lei de 3 de Novembro de 1910). Consagra-se, assim, o divórcio por mútuo consentimento e o divórcio litigioso, estabelecendo como suas causas legítimas o adultério da mulher, o adultério do homem, a condenação definitiva de um dos cônjuges a qualquer pena maior, as sevícias de origens graves, o abandono do domicílio conjugal por tempo não inferior a três anos, a ausência sem notícias, por tempo não inferior a quatro anos, a loucura incurável quando decorridos, pelo menos, três anos sob a sua verificação por sentença passada em julgado, a separação de facto livremente consentida, por 10 anos consecutivos, o vício inveterado do jogo de fortuna ou de azar, a doença contagiosa reconhecida como incurável e importante aberração sexual.
A mesma lei, numa lógica de separação da Igreja do Estado, consagra o casamento civil como o único válido e obrigatório, estabelecendo-se que, a partir de Fevereiro de 1911, os casamentos religiosos só poderão celebrar-se com a apresentação do documento comprovativo da celebração do casamento civil.
A doutrina corporativa do Estado Novo fundamentando-se na trilogia de "Deus, Pátria e Família", repudia a visão de simples contrato de direito, impondo uma concepção social do casamento como uma das mais importantes instituições sociais legitimando a intervenção do Estado na sua regulamentação. O casamento é