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22 DE FEVEREIRO DE 2023

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cinco dias», entre a consulta prévia e a entrega do documento sobre consentimento «deve decorrer um período

de reflexão não inferior a três dias», entre a entrega do documento sobre o consentimento e a interrupção da

gravidez «não deve decorrer um período superior a cinco dias, salvo se a mulher solicitar um período superior».

Acresce que todos os prazos devem garantir que a IVG por opção da mulher ocorre dentro das 10 semanas de

gravidez.

No entanto, a lei não está a ser cumprida, os prazos não estão a ser respeitados, a consulta prévia e os

procedimentos para IVG estão indisponíveis em muitos agrupamentos de centros de saúde e hospitais e o direito

das mulheres está a ser-lhes, pura e simplesmente, negado.

Mais de quinze anos depois de uma lei transformadora e emancipatória, muitas mulheres continuam a ver-

se julgadas, submetidas a ironias, sarcasmos e juízos de valor, são empurradas de instituição para instituição,

têm de se expor várias vezes e em alguns casos ouvem frases violentas que não só atentam contra o seu direito

legal, mas também contra a sua dignidade. Muitas, neste jogo do empurra, veem o tempo a passar até ao limite

quase insuportável e são obrigadas a recorrer ao privado, pagando do seu bolso por algo que a lei diz que deve

estar disponível no SNS. Não se sabe quantas não são obrigadas a uma gravidez forçada ou à clandestinidade.

Reportagens recentes do Diário de Notícias são exemplo disto que se acabou de dizer. No hospital da Guarda

dizem que não fazem IVG porque ali «é um hospital amigo dos bebés». Então a mulher que ligou para exercer

o direito de decidir sobre si e sobre a sua vida é, automaticamente e por exclusão de partes, inimiga de bebés?

Este juízo de valor é tolerável? O exercício de um direito legal é compatível com tamanha violência verbal? O

mesmo hospital diz que tente experimentar em Viseu, a uma hora de distância de carro. Não referencia, não

encaminha, nada, a mulher que faça a corrida de obstáculos. O mesmo acontece com Castelo Branco que diz

para as mulheres experimentarem na Covilhã ou em Portalegre ou na Guarda (onde já sabemos que também

nem a consulta prévia realizam).

Os exemplos são muitos e estas não são situações isoladas (ainda que mesmo que fossem isoladas seriam

igualmente graves). Em Santarém dizem: «ai aqui não vai fazer nada disso, não pense» e ainda «não tenho

médicos para as grávidas, vou ter para as IVG? Se está com pressa marque diretamente para a clínica e pague».

E no guichet de serviço, depois da consulta de datação da gravidez dizem, em voz alta e sem qualquer respeito

pela privacidade: «agora vai para a clínica dos Arcos». Mais violência verbal, o «não vai fazer disso», como se

fosse algo inominável e abjeto, o «não tenho médicos para grávidas, vou ter para IVG», como se este direito

não fosse um direito e a mulher fosse inferior às outras com quem o hospital a tenta comparar, apesar de a

comparação ser absurda por não se tratar de situações mutuamente exclusivas.

Para além de tudo isto, há o desrespeito crónico pelos prazos legais: consultas prévias marcadas para dali a

doze, treze, dezanove dias, quando a lei diz que o máximo são cinco; mulheres perto das dez semanas

angustiadas porque não sabem se conseguirão fazer todo o processo dentro do prazo legal para poderem

recorrer à IVG. Uma mulher, por não ter resposta do Hospital de Santa Maria, teve de pagar do seu próprio bolso

o procedimento numa entidade privada. A quantas terá acontecido o mesmo? Quantas terão sido empurradas

para uma gravidez forçada que não desejavam? Quantas terão procurado a clandestinidade, aquela que a lei

quis combater, porque a clandestinidade é um enorme risco para a saúde e para a vida das mulheres?

Infelizmente muitas destas situações não são novas. Já em 2018, o Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda

questionou todos os agrupamentos de centros de saúde e todos os centros hospitalares do SNS, no sentido de

fazer um retrato sobre a disponibilização de consultas prévias e de procedimentos de interrupção de gravidez.

Das respostas foi possível verificar que a lei da IVG não era respeitada pelo menos de três formas. Em primeiro

lugar, grande parte dos ACES — Agrupamentos de Centros de Saúde diziam não disponibilizar a consulta prévia

que é obrigatória para dar início ao processo de IVG. Em segundo lugar, havia situações de referenciação que

podiam obrigar as mulheres a várias deslocações e funcionavam como forma de desincentivo. Em terceiro lugar,

não existiam respostas em vários hospitais públicos, com destaque para a região de Lisboa e Vale do Tejo.

Antes da lei (não vai assim há muito tempo) o aborto clandestino era uma das principais causas de morte

materna e levava milhares de mulheres ao internamento hospitalar. Uma reportagem do jornal Público de 2003,

quatro anos antes da descriminalização, dizia que em 2002 cinco mulheres tinham morrido na sequência de um

aborto clandestino e onze mil tinham necessitado de tratamento e internamento hospitalar. Para além do enorme

risco para a saúde e para a vida, havia ainda a repressão, os julgamentos que expunham as mulheres, a

condenação com penas de prisão; todo um clima a que não queremos nem podemos voltar.