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II SÉRIE-A — NÚMERO 174

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que o procedimento possa prosseguir ainda que a vítima retire a sua declaração ou queixa» e no seu artigo 18.º,

n.º 4, que «a prestação de serviços não deverá depender da vontade das vítimas de apresentar queixa ou de

testemunhar contra qualquer perpetrador». Particularmente, relativamente a este artigo 55.º, n.º 1, o Grupo de

Peritos em Ação contra a Violência contra Mulheres e Violência Doméstica (GREVIO), grupo de peritos

independentes responsável pelo controlo da aplicação da Convenção de Istambul, recomendou, no seu relatório

de avaliação de 20191, a alteração da legislação nacional, afirmando: «GREVIO urges the Portuguese authorities

to amend their legislation to make it conform with the rules regarding ex parte and ex officio prosecution set out

in Article 55, paragraph 1, of the Istanbul Convention, as regards in particular the offences of physical and sexual

violence».

Acresce que, muitas vezes, o constrangimento causado pelo crime na vítima, a dificuldade em integrar o

sucedido, o receio de ter de voltar a enfrentar o agressor, a exposição pública da sua intimidade perante as

autoridades públicas e policiais e o receio da lógica de revitimização associada ao processo levam a que, nestes

casos, a/o ofendida/o acabe por preferir o silêncio e a impunibilidade da/o agressor/a à denúncia do crime e

impulso do processo penal. Comprovativo desta realidade são as estatísticas referentes ao crime de violação,

que demonstram que existem verdadeiras cifras negras nesta matéria.

Veja-se que o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) referente ao ano de 2021, refere que «o crime

de violação teve um acréscimo relativo do número de inquéritos e confirmou-se a preponderância da relação de

conhecimento entre autor e vítima», acrescentando que «no que concerne às subidas, o realce vai para a

violação, que apresenta uma subida de 26 %».

Atendendo à situação referida, a consagração da natureza pública dos crimes contra a liberdade sexual, ao

retirar o impulso processual e toda a penosidade que lhe está associada do âmbito da vítima, garantiria uma

redução significativa das cifras negras associadas a estes crimes e daria, assim, um contributo para a redução

da ocorrência futura de muitos crimes desta natureza, quer pelo facto de, por um lado, a comunidade ver

reforçados os seus meios gerais de prevenção e sensibilização, quer, por outro lado, uma maior dissuasão dos

potenciais agressores relativamente a estes crimes. Sublinhe-se que a atribuição de natureza pública a estes

crimes não irá levar a condenações injustas, uma vez que na fase de inquérito e nas fases subsequentes do

processo o crime de violação será investigado de acordo com as regras gerais de imputação penal e as garantias

concedidas à defesa.

Importa, contudo, sublinhar que nos crimes contra a liberdade sexual, que integram a Secção I do Capítulo

V do Código Penal, é a liberdade sexual que se pretende tutelar e que, conforme afirma Paulo Pinto de

Albuquerque2, corresponde «à esfera mais íntima da personalidade», e que a consagração da natureza pública

destes crimes, ainda que de uma certa perspetiva reforce a proteção da vítima e possa contribuir para a redução

deste tipo de crimes, pode pôr em causa o bem jurídico tutelado nos casos em que a vítima fundamentadamente

não pretende fazer seguir o procedimento criminal. Relembre-se que o processo penal acarreta aspetos

negativos com forte impacto psicológico que não devem ser ignorados, dos quais se destaca a sujeição da vítima

a um penoso processo de revitimização, com a sujeição a exames médicos invasivos e inquirições que entram

na sua mais profunda intimidade, mas que são indispensáveis à investigação criminal.

Assim, qualquer alteração legal que atribua natureza pública aos crimes contra a liberdade sexual deverá

evitar cair no erro de fazer prevalecer obstinadamente o interesse comunitário na persecução penal sobre a

vontade da vítima, levar em conta em conta estes aspetos negativos associados ao procedimento criminal e

prever, conforme defende a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima3(APAV), uma válvula de escape através

da qual se possa dar voz à vítima e valorar a sua vontade.

Tendo em conta o anteriormente exposto e a necessidade de assegurar o pleno cumprimento da Convenção

de Istambul, com o presente projeto de lei, o PAN, como partido vinculado ao princípio da não violência e que

assume a linha da frente da defesa dos direitos das mulheres, propõe que todos os crimes contra a liberdade

sexual, à exceção do crime de importunação sexual de pessoas maiores de idade, passem a ter a natureza

pública, prevendo-se, contudo, e em linha com o que defendeu a APAV, que nos procedimentos iniciados pelo

Ministério Público relativamente estes crimes contra pessoas maiores de idade a vítima possa, a todo o tempo,

1 GREVIO – Baseline Evaluation Report: Portugal. 2019, página 76. 2 Paulo Pinto de Albuquerque – Comentário ao Código Penal. 2.ª edição. Universidade Católica Editora, 2010, página 556. 3 APAV – Contributo da APAV referente ao Projeto de Lei n.º 1047/XIII/4.ª (PAN). 2018, página 10.