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II SÉRIE-C — NÚMERO 2

PROVEDOR DE JUSTIÇA Parecer I

O artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76. Posição do Provedor de Justiça e acórdão do Tribunal Constitucional (1988).

1.1 — Em 1986, o Provedor de Justiça suscitou perante o Tribunal Constitucional a questão da inconstitucionalidade (material) do artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76, de 13 de Julho, que define os termos em que poderão ser colhidos no corpo de pessoa falecida tecidos ou órgãos necessários para transplantação e outros fins terapêuticos.

A posição então assumida pelo Provedor de Justiça baseou-se no excelente parecer elaborado pelo assessor Dr. Carlos Soares de Brito, depois publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 48.°, Abril de 1988, pp. 239-266.

1.2 — Dispõe aquele artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76:

Os médicos não podem proceder à colheita quando, por qualquer forma, lhes seja dado conhecimento da oposição do falecido.

1.3 — Em síntese, era esta a argumentação aduzida no parecer, adoptada pelo Provedor de Justiça:

Reconhece o artigo 5.° o direito de oposição do falecido; só que não viabiliza o seu exercício.

A vontade do falecido, eventualmente contrária à colheita, apenas poderá ser comunicada aos médicos por terceiros. Mas para isso necessário se torna que eles tenham conhecimento da morte; assim, pelo menos, os parentes mais próximos.

Não tem a família, ela própria, um direito de oposição, não lhe cabendo autorizar a colheita. Mas deve ter o direito a conhecer da morte, para poder transmitir aos médicos a vontade expressa ou tácita do falecido.

Ao omitir a notificação do óbito ao círculo de pessoas capazes de fazer essa transmissão de vontade, compromete o artigo 5.° o exercício do direito de personalidade à disposição do corpo e, por decorrência, viola o n.° 1 do artigo 25.° da Constituição (direito à integridade pessoal), o n.° 1 do artigo 26.° (outros direitos pessoais), os n.os 1 e 2 do artigo 37.° (liberdade de expressão e informação) e, reflexamente, o n.° 1 do artigo 41.° (liberdade de consciência).

Acresce que o artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76 deveria fixar um prazo para ser comunicada aos médicos a oposição do falecido e, simultaneamente, para a formação do silêncio a partir do qual os médicos ficariam habilitados a efectuar a colheita.

2.1 — No Acórdão n.° 130/88, de 8 de Junho de 1988 (Diário da República, 2.a série, n.° 205, de 5 de Setembro de 1988, a p. 8101), entendeu o Tribunal Constitucional, embora com três votos dissidentes, não ser de declarar a inconstitucionalidade.

Considerou, desde logo, ser liminarmente de afastar a invocação dos artigos 37.° (liberdade de expressão e informação) e 26.°, n.° 1, da Constituição. Isto porque a liberdade de expressão e informação tem a ver

com o direito de manifestar publicamente ideias e factos e não com declarações de vontade ou de ciência entre simples particulares; por outro lado, nenhum dos direitos pessoais elencados no artigo 26.°, n.° 1, pode assumir relevo directo na hipótese.

Quanto ao direito à integridade pessoal (artigo 25.°, n.° 1), não sendo já o cadáver uma «pessoa», tem de se excluir a possibilidade de a colheita atentar contra a integridade «pessoal» de um cadáver.

2.2 — Problematizou, no entanto, o Tribunal Constitucional a questão noutro plano. Enquanto viva tem a pessoa o direito a opor-se à utilização do seu próprio cadáver para recolha de tecidos ou órgãos, «ao menos quando fundado em razões éticas, filosóficas ou de carácter religioso». A esse direito é de reconhecer relevo constitucional, num sistema radicado na dignidade da pessoa (artigos 1.° e 2.° da Constituição).

Só que o défice de regulamentação que o artigo 5.° denota, não instituindo formalismos ou mecanismos desburocratizados para captar a vontade do falecido, poderá ser suprido por um ónus de zelo da pessoa enquanto viva, tomando então providências para que a sua oposição seja conhecida em tempo oportuno. E a imposição de um prazo somente a partir do qual os médicos ficariam habilitados a efectuar a colheita inviabilizaria muitas intervenções determinadas por interesses sociais em igual plano merecedores de tutela.

3.1 — Na sua declaração de voto dissidente acompanha o conselheiro Raul Mateus o acórdão enquanto este atribui relevo constitucional ao direito de oposição à colheita. Mas assinala uma vertente que, a seu ver, confere maior premência ao eficaz exercício do direito. É que os órgãos ou tecidos transplantados não morrem, em termos biológicos, com a pessoa a cujo corpo originariamente pertenciam. Sobrevivem-lhe, continuando a desempenhar as funções que lhe são típicas, embora integrados nos sistemas vitais do corpo do beneficiário do transplante. Essa mescla de duas individualidades corporais não poderá ocorrer à revelia da pessoa de cujo cadáver se irão colher os órgãos ou tecidos.

Ora se é certo que para assegurar plenamente o exercício do direito fundamental de oposição bastaria à lei impor às pessoas o ónus de, em vida, declararem essa vontade, não menos certo é que à declaração de vontade produzida teria de ser assegurada pelo menos uma provável eficácia prática — por exemplo, determinando a lei a armazenagem das declarações em computador central cujo banco de dados fosse susceptível de consulta através de terminais existentes nos diversos estabelecimentos hospitalares. Mas nada disto sucede. Não é facultado o exercício efectivo do direito de oposição. «De que serviria, na verdade, que uma pessoa trouxesse permanentemente na carteira uma declaração de proibição de colheita — recurso porventura típico e próprio de um cidadão prudente, face ao apontado vazio legal — se os médicos não tivessem, de maneira alguma, o dever de aí a procurar?» Aliás, este sistema resultaria altamente falível, já que as pessoas de cujos cadáveres se recolhem órgãos ou tecidos para transplantes são, por regra, as vítimas de acidentes. Ora será comum a perda, por parte dos acidentados, da documentação que lhes respeita.

Daí que, na realidade das coisas, o facto de o artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76 não obrigar os médicos, previamente à colheita de órgãos ou tecidos, a