31 DE OUTUBRO DE 1990
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qualquer contacto com pessoas do círculo mais íntimo do falecido, com vista à captação da vontade deste (único meio verdadeiramente possível e eficaz) afecta o direito à disposição do próprio cadáver.
Quanto à fixação de um lapso de tempo para a transmissão, por parte de familiares e amigos, da vontade do falecido, não impediria, na prática, muitos transplantes, se a lei estabelecesse um período muito curto para o efeito e permitisse que as consultas se iniciassem no decurso da fase de observação para accertamento da morte.
3.2 — Para o conselheiro Messias Bento, o artigo 5.°, ou qualquer outra norma do aludido diploma, não impõe aos médicos qualquer dever de diligenciar o conhecimento de qualquer eventual oposição do falecido. É um regime laxista, que nem se preocupa em garantir, com um mínimo de eficácia, que as colheitas se façam só depois de haver a certeza da morte: «revogou a Portaria n.° 156/71, de 24 de Março, e nada dispôs sobre a verificação do óbito».
A inconstitucionalidade promana de os médicos poderem fazer a colheita sem diligenciarem em averiguar a eventual oposição do falecido. É ilegítimo — salvo, naturalmente, em casos muito graves e urgentes — que tais colheitas se possam fazer contra a vontade do falecido. Dai a afectação do direito à integridade física e moral (artigo 25.°, n.° 1), do direito à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.°, n.° 1) e da liberdade de consciência, de religião e de culto (artigo 41.°, n.os 1, 3 e 6).
O artigo 5.°, integrado no conjunto normativo do Decreto-Lei n.° 533/76, arrasta à desvalorização do direito de dispor do próprio cadáver, à sua trivialização ou inutilização.
3.3 — Reitera o conselheiro Monteiro Dinis que o artigo 5.° e todo o sistema do diploma criam a objectiva possibilidade de os médicos efectuarem colheitas sem que diligência alguma, efectiva e real, haja de por eles ser feita no sentido da averiguação de uma eventual oposição por parte do falecido. Não está instituído um sistema minimamente credível que impeça a imediata oposição dos médicos em oposição à vontade do falecido. Aliás, a ausência de um regime que imponha critérios legais, com base em padrões científicos, para a determinação da morte permite, pelo menos no plano das hipóteses, que possam ser recolhidos órgãos em indivíduos não cadáveres. Todos os cidadãos estão transformados em potenciais dadores forçados. Está consentido o desenvolvimento de iniciativas comerciais privadas directamente relacionadas com os transplantes.
3.4 — O conselheiro Cardoso da Costa, tendo votado o acórdão, não deixou de, em declaração de voto, reconhecer que a disciplina legal da colheita de órgãos e tecidos apresenta «consideráveis deficiências ou insuficiências». Lembrou, no entanto, que do artigo 5.° já se extrairá um certo dever de diligência ou de cuidado dos médicos — embora de conteúdo imperfeitamente determinado — em ordem a evitar-se a realização de colheitas contra a vontade do falecido.
II
As deficiências do Decreto-Lei n.° 553/76
4.1 — São patentes as deficiências detectáveis no Decreto-Lei n.° 553/76, de 13 de Julho.
Desde logo, versa apenas sobre a colheita de órgãos e tecidos em cadáveres, omitindo por completo o enquadramento legal da extracção de tecidos e órgãos de pessoas vivas.
A Lei n.° 1/70, de 20 de Fevereiro, diz somente respeito à colheita de «produtos biológicos humanos» (como, por exemplo, sangue e leite — este nas «condições especiais» a fixar por portaria), e não de órgãos e tecidos.
4.2 — O escasso apuro técnico do Decreto-Lei n.° 553/76 poderá ser consequência da intencionalidade expedita que o determinou: a de substituição, quase que em «estado de necessidade», do sistema do Decreto--Lei n.° 45 683, de 25 de Abril de 1964, em ordem a facultar soluções mais praticáveis no tocante às trans-platações.
Dizia respeito este diploma de 1964, de igual modo, à colheita no corpo de pessoa falecida de tecidos ou órgãos de qualquer natureza, «nomeadamente ossos, cartilagens, vasos, pele, globos oculares e sangue», quando eles fossem necessários «para fins terapêuticos ou científicos», e essa intervenção, para ser útil, não pudesse aguardar «o decurso do prazo legal de prevenção contra a morte aparente» (artigo 1.°).
Podia a colheita ser efectuada em «bancos gerais especializados em olhos ou outros órgãos ou tecidos» ou em bancos instalados por entidades particulares autorizadas por alvará passado pelo Ministério da Saúde e Assistência — e ainda em clínicas e institutos universitários e hospitais públicos ou privados e casas de saúde autorizados por portaria do Ministério da Saúde e Assistência (artigo 3.° e § único do artigo 2.°).
4.3 — Na execução das colheitas deveria observarle rigoroso respeito pelo decoro do cadáver e evitarle mutilações ou dissecações não necessárias para a recolha dos tecidos ou órgãos e para as verificações indispensáveis à utilização destes e por forma a, quanto possível, não prejudicar a realização da autópsia, se viesse a mostrar-se necessária. Depois da operação deveria ser restabelecida a morfologia do corpo, podendo usar-se para esse efeito elementos de prótese (artigo 13.°).
5 — A verificação da morte era objecto de detalhada regulamentação, complementada depois pelas Portarias n.os 20 688, de 27 de Julho de 1964, e 156/71, de 24 de Março.
6 — A gratuitidade da colheita — em relação ao dador ou a quem tivesse autorizado (a família) — era regra (artigo 8.°), apenas sendo válida a disposição pela qual o falecido tivesse imposto ao serviço que, por ele autorizado, determinasse a colheita o encargo de custear o seu funeral, até ao limite que fosse fixado em despacho ministerial (§ único desse artigo 8.°).
7 — Ainda que autorizadas pelo falecido, as colheitas não poderiam efectuar-se quando contrárias «à moral ou aos bons costumes» (§ 1." do artigo 1.°).
Significava isto que não poderiam ser efectuadas, por exemplo, transplantações do cérebro ou das glândulas sexuais, já que violadoras da dignidade humana (assim, v. g., Lei italiana n.° 644, de 2 de Dezembro de 1975).
8 — Ora, o Decreto-Lei n.° 553/76, embora mantendo em vigor, em tudo o que o não contrarie, as Portarias n.os 20 799 e 20 800, ambas de 10 de Setembro de 1964, e 24 217, de 2 de Agosto de 1969 (que reula-mentaram, respectivamente, a criação e funcionamento dos bancos de órgãos ou tecidos, gerais ou especializados, que vierem a ser criados em estabelecimentos oficiais, e a criação do banco de olhos dos Hospitais Civis de Lisboa, e que autorizou os Hospitais da Uni-