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31 DE OUTUBRO DE 1990

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Daí que antes de qualquer extracção para fins terapêuticos o dador deva ser informado sobre todas as consequências previsíveis de ordem física e psicológica da extracção, assim como sobre todas as repercussões eventuais desta sobre a vida pessoal e profissional do dador (Decreto 78-501, de 31 de Março de 1978).

Entretanto, alguns autores põem reservas quanto a esta posição, se os riscos forem graves: o ânimo de salvar uma vida não poderá justificar a extracção de um órgão que afecte a integridade física (Dausset, «Le don d'organes: un geste de solidarité», na Rev. FORUM, «Dossier Santé», Maio de 1987, p. 14).

Tudo parece estar na procura de um ponto de equilíbrio, de uma solução de proporcionalidade (Michèle Harichaux, «Le corps objet», em Bioéthique et Droit, ed. P. U. F., 1988, maxime p. 133).

11.1 — E quanto à dação por menores?

A aludida Resolução (78) 29 de Conselho da Europa prevê-a expressamente (n.° 1 do artigo 2.°): quando se tratar de um menor ou de outro incapaz (no ponto de vista jurídico), o seu representante legal deve ser informado, de modo adequado, antes da extracção, das possíveis consequências desta, designadamente médicas, sociais ou psicológicas, assim como do interesse que a extracção representa para o beneficiário.

Este ónus de informação vale também em relação ao dador maior e não incapaz; só que, obviamente, será ele próprio a ser informado.

Estabelece ainda o artigo 6.° da mesma resolução:

1 — No que respeita aos juridicamente incapazes, as extracções de substâncias susceptíveis de regeneração devem ser excepcionais. Tais extracções serão possíveis quando necessárias por razões terapêuticas ou de diagnóstico. Só poderão ser efectuadas com o consentimento do representante legal do incapaz, salvo oposição do próprio incapaz. Se as extracções apresentarem um risco para a saúde do incapaz, será também necessário obter a autorização de uma entidade (pública) competente.

2 — São proibidas as extracções de substâncias não susceptíveis de regeneração em juridicamente incapazes. No entanto, um Estado pode prever que, em casos excepcionais, justificados por razões terapêuticas e de diagnóstico, uma extracção (dessa natureza) seja possível se o dador tiver discernimento e tiver dado o seu consentimento, se o representante legal e uma entidade (pública) competente a autorizarem e se o dador e o beneficiário estiverem estreitamente aparentados geneticamente.

3 — As extracções de substâncias que impliquem um risco previsivelmente grave para a vida ou a saúde do dador, quando este for um juridicamente incapaz, são proibidas.

11.2 — Realmente, a ideia nuclear que subjaz ao consentimento do dador vivo é que ele seja pessoal, livre e expresso. Ora, para que o consentimento seja verdadeiramente livre, necessário se torna que, em princípio, o dador tenha pleno discernimento, isento de pressões e com inteiro conhecimento de causa.

Daí que, a exemplo do que acontece com a legislação italiana, a Lei espanhola 30/1979 expressamente imponha (artigo 4.°) que o dador seja maior de idade e que esteja no gozo de plenas faculdades mentais. Não se prevê qualquer excepção a esta regra.

11.3 — A Lei francesa de 1976 prevê a dação feita por menores, desde que o beneficiário seja um irmão ou uma irmã e que seja obtida a autorização de três peritos médicos, podendo, em qualquer caso, o menor opor-se à extracção, quando for possível obter o seu consentimento.

11.4 — É duvidoso que não se deva seguir a solução italiana ou espanhola.

IV

O artigo 5.° da Lei n.° 553/76

12.1 — Quanto à colheita de órgãos e tecidos post mortem não resta dúvida de que no confronto do interesse «integridade» do corpo e projecção da dignidade da pessoa para além da sua morte e do interesse da protecção da saúde dos vivos, beneficiários do transplante, deverá, como regra, prevalecer este último.

Parece precipitado falar, sem mais, no risco da «nacionalização» ou da «socialização» do cadáver.

É inegável que o cadáver não é uma coisa, como asseverava, por exemplo, Dias Ferreira (Código Civil Português Anotado, i, 2.a ed. 1984, p. 6), partindo da divisão rígida e conceptualizante entre pessoas e coisas, concluía ele que o cadáver, não sendo já uma pessoa, teria de ser uma coisa. E mesmo nesta perspectiva, nem haveria um direito real sobre o cadáver, susceptível de transmissão sucessória: o cadáver sempre seria uma coisa fora do comércio.

A dignidade humana postula que o destino normal do cadáver, no qual se projecta a essência da pessoa viva, seja «o de ser dado à paz da sepultura», na frase, de De Cupis. Mas esse destino não se desfigura quando contribua para promover a solidariedade, em benefício dos vivos.

Como já assinalava Cunha Gonçalves (Tratado de Direito Civil, I, 1929, p. 304), se pela morte a personalidade jurídica fica extinta, o cadáver, como rema-nescência ou invólucro dessa personalidade, é ainda objecto de respeito.

Gomes da Silva foi mais além: «Sobre (o cadáver) projecta-se [...] a dignidade da pessoa de quem fez parte e, por isso mesmo, logo que, por exigência da moral e do direito natural, ele deve ser respeitado e venerado, em homenagem a essa mesma dignidade. (Isto porque) só pode ser tomado pelo direito como acessório ou extensão das pessoas» (em Esboço de uma Concepção Personalista do Direito, 1965, p. 185).

12.2 — Precisamente por assim ser, um acto de disposição em vida do cadáver não fere a dignidade da pessoa. É um acto que radica no respeito da pessoa pelos outros, que sobreleva o poder autónomo que pudesse ser reconhecido aos familiares, designadamente para prestar qualquer autorização; esta apenas poderia ser entendida como, no caso de não ser conhecida a vontade do falecido, uma transmissão ou uma «interpretação» dessa vontade, tácita ou explicitada.

13.1 — Só que a intervenção dos familiares pode não contribuir para o conhecimento da vontade do falecido. A tendência natural será a de que a vontade declarada seja a sua própria vontade, expressa em momento de natural perturbação emocional, que resvalará no ímpeto de assegurar, à outrance, a incolumidade do cadáver.