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II SÉRIE-C — NÚMERO 2

Ou então, poderá ser uma vontade gerada pela mira de lucratividade — o que por completo desfigura o sistema.

13.2 — Não existindo uma declaração positiva do falecido, emitida em vida, no sentido da vontade de dar, ou uma declaração negativa, no sentido de não dar, não colide com qualquer regra de ética que estabeleça a presunção (probabilis conjectura) da vontade de dar.

13.3 — O que se afigura é de distinguir bem claramente entre as extracções para fins terapêuticos e as extracções para fins científicos.

As primeiras são feitas ad vitam ou ad vitalitatem, e nelas se poderá fazer um subdistinção entre as que têm fins curativos apenas mediatos, para aprovisionamento de bancos de órgãos (e ai o carácter ad vitam ou ad vitalitatem esbater-se-á a um ponto significativo), e as que são determinadas por fins curativos imediatos. A estas é que poderá aproveitar a ideia de um genuíno «estado de necessidade».

14.1 — É a Lei espanhola 30/1979 paradigmática da orientação que valeu para o diploma português de 1976 (artigo 5.°):

Dispõe, com efeito, o n.° 2 do artigo 5.° daquela Lei 30/1979:

A extracção de órgãos ou outras peças anatómicas de falecidos poderá realizar-se com fins terapêuticos ou científicos, no caso de estes não terem feito constar expressamente a sua oposição.

E acrescenta o n.° 3 desse mesmo artigo 5.°:

As pessoas presumivelmente sãs que falecerem em acidente ou como consequência ulterior deste considerar-se-ão, mesmo assim, como dadores, se não constar oposição expressa do falecido. Para tal, deve constar a autorização do juiz a quem caiba o conhecimento do processo, o qual a deverá conceder naqueles casos em que a obtenção dos órgãos não dificulte a instrução do inquérito por estarem devidamente justificadas as causas da morte.

Corresponderá, de certo modo, o n.° 3 da lei espanhola ao artigo 4.° da lei portuguesa.

14.2 — Tem a solução espanhola sido objecto de reparo quanto à extracção de órgãos para fins científicos — por demasiado simplificadora (assim, Antonio Gordillo Canas, Transplantes de Órganos: «Pietas» o Familiar y Solidaridad Humana, 1987, p. 77).

Essa critica não colhe quanto à lei portuguesa, uma vez que respeita apenas à colheita para fins terapêuticos.

No que a lei portuguesa (o artigo 5.°) falhará é na total ausência de regulamentação quanto aos meios de o dador, em vida, manifestar a sua oposição com eficácia post mortem.

A Lei n.° 30/1979, ao invés, foi complementada pelo Decreto n.° 426/1980, de 22 de Fevereiro, que prevê a existência em todos os centros hospitalares autorizados a fazer a extracção de órgãos em cadáveres de um livro-registo de declarações de vontade, quer positivas, quer negativas (artigo 8.°).

Em termos práticos, o regime espanhol funciona assim:

Não se exige declaração expressa da vontade de efectuar a dação post mortem, ou o consentimento formal à futura extracção. Considera-se que este existirá se não existir oposição expressa. Como refere Gordillo Canas, haverá então uma fixação (juridicamente relevante) de consentimento.

A solução, ao que sublinha o mesmo autor, tem em vista facilitar os transplantes — na mesma linha da adoptada na Dinamarca, França, Grécia, Itália, Noruega, Suécia, etc. (ob. cit., p. 82).

14.3 — A lei espanhola pretendeu prescindir por completo da intervenção dos familiares do falecido.

O certo é que, como ainda informa Gordillo Canas (ob. cit., p. 84), «os médicos, não obstante, temem a reacção desses familiares perante o facto consumado de uma extracção que não autorizaram».

E isto, em certa medida, porque, sem derrogar o sistema da lei que regulamenta (como é óbvio), o artigo 9.° do Decreto n.° 426/1980 prevê que, «se as circunstâncias não o impedirem [o médico] informará os familiares presentes no centro sanitário sobre a necessidade, natureza e circunstâncias da extracção, bem como da consequente recomposição [do corpo], conservação e práticas de sanidade mortuária».

Trata-se de um critério ambíguo em termos de realidade, porque permite de facto a intervenção decisória dos familiares, «os quais poderão manifestar a sua própria vontade fingindo uma oposição do falecido praticamente inverificável» (Gordillo Canas, p. 87).

14.4 — Estamos em crer que o sistema do artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76, que confina a utilização do cadáver a fins meramente terapêuticos, apenas claudica enquanto não viabiliza que, em vida, o dador se oponha à utilização do seu corpo, depois da morte, para extracção de órgãos ou tecidos.

A intervenção dos familiares quer no uso de um direito próprio, quer como transmitentes da vontade do falecido, dará sempre lugar a dúvidas, imprecisões e riscos — sobretudo para os médicos, que se poderão ver confrontados com a imputação da omissão de um dever de diligência só aferível em termos de razoabilidade, e não de objectiva segurança.

15 — Não deve ser, no entanto, esquecido que a intervenção dos familiares como transmitentes da vontade expressa ou tácita do falecido não deixa de ter qualificados defensores.

Fala-se mesmo no seu direito de defesa e custódia do cadáver (Totensorgerecht), em ordem a evitar qualquer agressão indevida e a exigir a sua incolumidade e respeito.

Nessa perspectiva, os familiares não poderiam dispor do cadáver, nem exercer em relação a ele qualquer direito próprio: meros Treuhander, apenas lhes seria facultado opor-se a que ao cadáver fosse dado outro qualquer destino que não o da sepultura.

16.1 — E, como é sabido, em alguns sistemas jurídicos (assim em Inglaterra), os familiares podem mesmo usar de um direito próprio, opondo-se à utilização do cadáver, mesmo que o falecido, em vida, a tenha consentido.

Não deixa também de se observar que na Dinamarca se opera, neste momento, um inflexão ao regime vigente.