0204 | II Série C - Número 014 | 02 de Fevereiro de 2002
COMISSÃO DE DEFESA NACIONAL
Relatório acerca das consequências dos eventuais efeitos provocados nos militares pela utilização de munições revestidas com urânio empobrecido
I - Introdução
No decorrer dos quatro primeiros meses de 2001 surgiu um interesse especial relativamente à utilização de munições com urânio empobrecido na campanha aérea de 1999 na Sérvia e no Kosovo. Uma atenção especial foi dedicada às presumíveis ligações entre este tipo de munições e o cancro, mais especificamente a leucemia, nos veteranos dos Balcãs. No princípio de Janeiro de 2001 a morte recente de seis capacetes azuis italianos da KFOR, atribuídas a leucemia, relançou a preocupação pelos potenciais riscos de saúde associados às munições de urânio empobrecido. No seguimento destas mortes o governo italiano pediu à NATO para dar início a uma investigação exaustiva sobre a utilização das munições de urânio empobrecido no decorrer da campanha aérea do Kosovo, a fim de se concluir se existiria, efectivamente, uma ligação entre o contacto com o urânio empobrecido e o cancro.
Surgiram, entretanto, preocupações de outros governos europeus, que pretendiam confirmar se as munições de urânio empobrecido poderiam ter provocado outras doenças e mortes por cancro entre as suas forças de manutenção de paz enviadas para os Balcãs, que se intensificaram depois da denúncia feita por Itália. Numa altura em que não existem provas científicas concretas, não se pode concluir que haja ligação entre as munições com urânio empobrecido e o cancro. Inúmeros governos exigem que sejam efectuados inquéritos sobre os riscos sanitários potenciais associados ao urânio empobrecido. A situação agravou-se assim que estas queixas foram apresentadas, segundo as quais níveis perigosos de materiais altamente radioactivos, como o plutónio e o isótopo de urânio U-236, poderiam ser encontrados nas munições de urânio empobrecido e, por consequência, esta substância ligeiramente radioactiva poderia estar ligada aos famosos síndromas do Golfo e dos Balcãs. Alguns aliados europeus exprimiram, igualmente, as suas preocupações sobre a falta de acesso a informações relativas à utilização e ao uso pelos Estados Unidos de munições de urânio empobrecido durante a campanha aérea do Kosovo.
A saúde e a segurança das forças encarregadas de manter a paz e os civis que tentam proteger são objecto de extrema importância, tanto científica como tecnológica, assim como as fronteiras civis-militares em matéria de segurança europeia.
O presente relatório dá a conhecer um estudo independente dos diversos aspectos relativos ao debate alargado dos efeitos do urânio empobrecido, dando relevo a investigações e conclusões de pesquisas recentes e fornecendo informações objectivas. Este relatório analisa as perspectivas nacionais dos Estados-membros e não-membros da NATO, salientando a forma como cada país, e, em especial, Portugal, responde às preocupações suscitadas pela ligação entre as munições de urânio empobrecido e o cancro, assim como os seus efeitos no passado e no presente, para assim poderem, de forma eficaz, proteger as suas forças armadas. Este documento analisa, de seguida, a forma como as organizações internacionais respondem aos recentes acontecimentos, tendo em consideração a pesquisa mais abrangente sobre o urânio empobrecido, efectuada conjuntamente.
O relatório analisa, mais adiante, de forma detalhada, os dados científicos disponíveis, em particular os estudos feitos que poderão dilatar o debate, para além da recente pesquisa médica imediata.
As conclusões propõem algumas recomendações sustentadas por resultados de estudos científicos recentes.
II - Propriedades, utilizações e mecanismos de exposição ao urânio empobrecido
O urânio empobrecido provém do urânio natural, um elemento radioactivo geralmente presente nas rochas naturais. O urânio natural contem três isótopos diferentes: U-235, U-234 e U-238. Um isótopo é um átomo de um elemento químico simples, que possui o mesmo número atómico e a mesma posição no quadro periódico (tableaux périodique), bem como um comportamento químico quase idêntico, mas cuja massa atómica ou o número de massa difere e cujas propriedades físicas são diferentes. O urânio é o principal combustível utilizado para a energia nuclear e para as indústrias de armamento. No entanto, a fim de obter urânio com um grau suficientemente elevado para ser utilizado nestas indústrias é necessário proceder-se primeiro a um processo de enriquecimento. Por exemplo, na indústria de energia nuclear os reactores necessitam de combustível de urânio enriquecido em U-235 a partir do seu nível normal de 0,79% a aproximadamente 3%.
O tratamento de enriquecimento anula, quase totalmente, o isótopo U-234 e os outros dois terços do isótopo U-235. A substância que resta depois do tratamento, chamada urânio empobrecido, é essencialmente composta do isótopo menos radioactivo, o isótopo U-238, que apresenta uma radioactividade inferior em cerca de 80% à do urânio natural. O tratamento de enriquecimento não elimina todos os elementos radioactivos; restos de outros isótopos radioactivos introduzidos no decorrer do tratamento podem igualmente revelar-se. No entanto, o urânio empobrecido apresenta uma radioactividade significativamente inferior à do urânio natural e do urânio enriquecido e, é, por consequência, classificado pela Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) como uma matéria de fraca actividade específica, a mais fraca de todos as matérias de risco.
O urânio empobrecido, pela sua baixa radioactividade, tem várias aplicações (largas quantidades são deixadas após o tratamento de enriquecimento nas indústrias de energia nuclear e de armamento), bem como uma densidade e um ponto de fusão elevados (similares à de outros metais pesados como o chumbo e o tungsténio). Nas aplicações civis utiliza-se nos contrapesos dos aviões, nos escudos de protecção contra as radiações na radioterapia médica e nos contentores para o transporte de materiais radioactivos. Nas utilizações militares contam-se os blindados e as munições e projecteis anti-blindados. Por um lado, o urânio empobrecido é 65% mais denso que o chumbo, e, por consequência, revela-se um penetrador útil, assim como uma barreira eficaz contra este tipo de munições. Por outro, contrariamente ao tungsténio que se lamina com o impacto, os projecteis de urânio empobrecido ardem e auto purificam-se, o que o torna as munições mais eficazes contra os blindados (os tanques, por exemplo). Segundo um funcionário da NATO, "nenhum metal equivalente faz um trabalho tão bom de penetração nos blindados como o urânio empobrecido".
Assim sendo, as munições com urânio empobrecido foram introduzidas nas forças armadas como material militar anti-tanque, utilizado contra as forças soviéticas, depois de 1970. No entanto, estas munições só foram utilizadas em combate pela primeira vez na Guerra do Golfo Pérsico, em 1991, o que não surpreende dado que a maior parte dos