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234 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

não se restringe nem se adapta a um espiritualismo austero, a um mysticismo estéril, a uma ideologia nebulosa, accessivel a poucos entendimentos, necessita expandir-se, purificar-se, fortalecer-se com a prece em commum, com a profissão publica da fé, com as formulas solemnes do culto, com tudo o que as religiões têem de unção, de conforto e de esperança para as tribulações e angustias da vida, para os terrores, para os mysterios de alem da morte. Embora só haja uma religião verdadeira, e n'este raciocinio se teem estribado os crimes de todas as theocracias, os homens sinceramente crentes suppõem sempre que essa religião é a sua. Obstar de «algum modo a que a confessem, quando não é possível deter os progressos e nem sequer os extravios do pensamento, constituo um erro deplorável de que a miudo resultará ora a indifferença ora a hypocrisia, e constrange iniquamente um sentimento íntimo, virtuoso, enérgico, superior talvez a todos os affectos, a natural, a instinctiva religiosidade com que a alma aspira ao infinito.

Não póde, pois, pedir-se, em nome do catholicismo ou de qualquer doutrina religiosa, força coerciva ao estado. Onde deveras se respire a atmosphera da liberdade, ou hão de nivelar-se todos os cultos, outorgando-se-lhes igual tolerancia e igiuu patrocínio, ideal da justiça, cuja realização collide por agora com as tradições, com os costumes, com as condições moraes de muitos paizes e especialmente do nosso; ou quando, em acatamento a vontade da máxima parte dos cidadãos, existir uma religião protegida e subsidiada pelo estado, deve pelo menos estatuir-se para as outras crenças plena emancipação de consciência o de culto. Taes são os salutares principios, que boa parte das nações civilisadas tem já adoptado; tal é a legislação, que perfeitamente se coaduna com a proverbial brandura da nossa índole, com a imparcialidade de outras instituições, com as peculiares, com as impreteriveis circumstancias do vasto imperio que ainda temos na Asia e na Africa.

Asseveram os impugnadores destas doutrinas, que a grande maioria da sociedade portugueza acolhe inteiramente satisfeita o estado actual das relações religiosas. É este o precipuo, o formidável argumento, que em quaesquer questões de ordem moral apresentam sempre os partidos conservadores. Se o attendessemos, a lei do incessante aperfeiçoamento, consentanea a todas as cousas humanas, não O seria á sciencia politica, porque ha de facto nas sociedades uma especie de misoneismo, que as incita a temer não só os violentos abalos, mas ainda a evolução lenta e prudente, de que dimanam as transformações e as reformas. Felizmente para debellar esta tendência, que se descobre tanto mais viva, quanto é mais espessa e trivial a escacez da instrucção, ha muitas vezes nos homens, que têem voz e voto no destino das nações, a rasão clara, as lições da experiencia, as convicções reflectidas, as inspirações fecundas, o vigoroso impulso do dever. Assim entre nós é obvio que a parte mais numerosa da nação, se não segue com escrupulo em todos os actos da vida os sublimes dictames do Evangelho, acceita, comtudo, reconhece e confessa os dogmas e a disciplina do culto catholico, e até por vezes transpõe as fronteiras da credulidade; mas esta situação decisiva de opiniões, de sentimentos e de habitos não póde compellir os legisladores a coarctarem de modo algum a maxima tolerancia para as ramificações, para as dissidencias religiosas, que tambem innegavelmente se manifestam.

Dizem-nos que existe a tolerancia; que estamos n'uma epocha de paz e de accordo; que, embora as leis sejam severas e terminantes, não ha auctoridades nem tribuuaes que as appliquem; que a perseguição é apenas um phantasma, que a ninguem prejudica ou intimida. São asserções cujo alcance está muito longe de corresponder á verdade; são, como diria Hamlet, palavras, palavras, não mais que palavras. Qualquer que seja a forma mais ou meãos cruel por que se execute, a perseguição subsiste, e ultrapassa os limites da equidade e da justiça. De certo no século actual não se desconjunctam os membros a tratos de polé ou de potro, não se espedaçam os corpos no patíbulo, não se punem com o ergastulo e com a morto os erros ou os acertos do entendimento. Vão longe esses tempos de violencia e de atrocidade, como vão longe tambem os de audaz energia, os de soffrimento assombroso. Se o fanatismo, porém, impedido pela suavidade dos costumes e pela civilisação da nossa epocha, não póde já satisfazer sem estorvo os seus furores, a intolerancia, accommodando-se a qualquer grau de cultura, realisa ainda em larga escala pensamentos de iniquidade e de oppressão.

D'este modo, encorporados nas leis certos preceitos, que dão á religião catholica apostolica romana a auctoridade e o valor do instituição politica, e fixado á universalidade dos cidadãos o dever de submetterem a estes preceitos muitos actos importantes da sua vida publica, é claro que aquelles individuos, que não pertençam ao gremio orthodoxo, ou hão de mentir aos affectos mais santos e mais íntimos, tingindo uma crença, que a voz da consciência lhes não inspira, ou hão de ser inevitavelmente coagidos á privação de muitos direitos e proventos, não podendo obter ingresso no governo, no parlamento, nos conselhos, nos cargos administrativos, judiciaes ou militares, tendo de viver como estrangeiros no meio dos seus compatriotas, e resignando-se a sacrificios tanto mais penosos, quanto, constituindo em geral factos obscuros e quasi desconhecidos, nem ao menos servem, como os dos antigos martyres, para animar os tímidos a perseverarem na fé.

Tal é entre nós a situação de muitos adeptos das diversas igrejas protestantes; tal é a sorte de uma população numerosa, intelligente, activa, que presta adoração a Deus conforme uma crença, que foi por muitos séculos verdadeira, e de que a religião do Calvário, do amor e do perdão misericordioso é o sacrosanto complemento.

Não constituirão os factos a que alludo perseguição clara e irrefragavel, perseguição que infringe os fóros individuaes, e afironta a dignidade social da geração presente ? Não estarão taes factos em evidente antinomia com a disposição indubitavelmente constitucional do § 4.° do artigo 145.° da carta, onde se determina que ninguém póde ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do estado e não offenda a moral publica? Não será extravagante o illogico dar á religião catholica na metrópole o caracter de dominação exclusiva, e consentir nas possessões da Asia e da Africa o estabelecimento de varias seitas e de differentes ritos? Respondam a estas perguntas os que antepõem a confissão da verdade às suggestões e influencias de qualquer interesse partidario.

Ha quem esteie tambem o seu voto no receio de que a liberdade de cultos possa entibiar a fé catholica. Extranha cegueira. A religião, cujos dogmas se têem mantido inabaláveis desde os tempos apostólicos até hoje, cuja doutrina tem conquistado sempre indefectível predomínio sobre as mais altas intelligencias e sobre as mais humildes e grosseiras, não póde temer a coexistência de diversas crenças, e em vez de enervar-se no meio d'ellas ha de permanecer pura e illesa, e augmentar em força e explendor; porque, se a intolerancia disperta sympathias em favor das idéas perseguidas, a franca manifestação do pensamento, o sincero exercício do culto, a discussão, a publicidade, a attracção por meio da palavra e do exemplo hão de contribuir efficazmente para que se conciliem as opiniões, para que se desvaneçam as duvidas, para que todos comprehendam o verbo de paz e de fraternidade revelado no Evangelho, para que sobre as ruinas dos systemas, ou falsos ou incompletos, se erga, emfim, o edifício da serena e immortal sabedoria.

Este parecer não é só meu, é de todos os amigos verdadeiros das instituições liberaes, é de muitos e mui piedosos escriptores catholicos, santos padres, doutores da igreja, prelados virtuosos e exemplares. O perigo, não absoluto, mas relativo, que ameaça o catholicismo, não está na voz da consciência, que nos falla da liberdade e da dignidade