SESSÃO N.° 31 DE 29 DE JULHO DE 1908 3
El-Rei e para Sua Alteza Serenissima o Senhor Infante D. Affonso.
É do teor seguinte:
PROPOSTA
Proponho que o projecto na ordem do dia seja retirado da discussão, por inconstitucional, manifestamente offensivo do disposto nos artigos 10.°, 84.º e 145.° § 2.° da Carta Constitucional, e que seja substituido por um outro, em que se trate, pura e simplesmente, da dotação do Rei e de Sua Alteza Serenissima, nos termos do artigo 80.° da mesma Carta, acompanhado dos elementos precisos para esclarecimento das Côrtes.
O artigo 5.° d'este projecto, Sr. Presidente, estabelece o processo a seguir, para liquidar as contas, entre o Thesouro Publico e a fazenda da Casa Real, contra a terminante disposição do § 2.° do artigo 145.° da Carta Constitucional, que contem doutrina essencialmente constitucional, porque o artigo 5.° pretende regular, por uma lei a fazer ainda, que seria o projecto, se pudesse ser votado, factos já passados, - que são os adeantamentos.
Isto é monstruosamente absurdo, em face dos mais rudimentares principios da virtude e da razão, e até do mais comezinho bom senso; mas é, sobretudo, uma tremenda infracção da Carta Constitucional.
A Camara sem poderes constituintes não pode alterar a lei fundamental do Reino.
Se o fizesse, faria a revolução, dando o exemplo perigosissimo de desprezar a lei, que ella tem de acatar, e de cujo fiel cumprimento, até, lhe incumbe a fiscalização.
Dar effeito retroactivo á lei, não póde ser, Sr. Presidente.
Este argumento não tem resposta.
Não a pode ter á face da lei e dos factos.
Appello para todos os jurisconsultos, para todos os homens de bom senso.
Veja bem a Camara, veja bem o País e veja bem o Rei o que representaria um tal attentado.
Mas este não é só o unico preceito constitucional que o projecto rasga, e calca aos pés; e comtudo só de per si este bastaria para o aniquilar, e provar, sobejamente, a impossibilidade da sua subsistencia.
Ha mais.
O mesmo artigo 5.° do mesmo monstruoso projecto estabelece que, depois da liquidação feita pela tal famosa commissão, a divida reconhecida d'este modo será paga em prestações annuaes não inferiores a 5 por cento.
Veja V. Exa., Sr. Presidente, e veja a Camara, como se ousa conferir ás Côrtes a faculdade de fixarem, em lei, - que monstruoso absurdo juridico! - um saldo de contas a liquidar.
As Côrtes a conferirem a si proprias funcções judiciaes, e a fixarem saldos de contas a liquidar, por meio de uma lei.
Isto é de tal modo espantosamente injuridico que custa a acreditar que alguem o pudesse conceber.
Mas o artigo 5.° ainda vae mais longe: estabelece desde já a forma de pagamento!
Pode lá ser, semelhante cousa! Pode a Camara votar, porventura, um tal absurdo? É impossivel. Porque, aqui, do mesmo modo se investe de frente com o artigo 10.° da Carta Constitucional, que encerra, tambem, materia constitucional.
Este argumento, da mesma forma que o anterior, é decisivo e fulminante para o projecto, que deve ser posto de parte, como cousa de que a Camara se não pode occupar, sem manifesta violação da lei, exorbitancia inaudita de funcções e perigosissima anarchia no poder.
Mas ha mais ainda, Sr. Presidente, nesse artigo 5.° do projecto, contra a letra expressa de outra disposição legal, que é o artigo 84.° da Carta Constitucional.
Manda este artigo que todas as acções activas e passivas concernentes á Casa Real sejam tratadas com o mordomo, administrador d'ella.
Comprehende-se a razão d'este preceito da lei.
É para evitar que a alta magistratura real chame, ou seja chamada, a pleitos de dinheiro.
Pois neste projecto põe-se em foco a pessoa do Rei, já de mais discutida, e legisla-se como se aquella disposição legal não existisse.
Que deploravel confusão de todos os principios! que atropelo de todas as leis! que falta de criterio, de juizo, e de simples bom senso, Sr. Presidente!
Forma-se um tribunal especial para um caso do passado, com retroacção da lei, quer quanto ao tribunal, quer quanto ao processo, quer quanto ás pessoas; confundem-se os poderes do Estado, saindo o legislativo da sua esfera legal, para assumir funcções judiciaes: tudo contra leis positivas, categoricas e terminantes, e para collocar o Chefe do Estado numa situação odiosissima, abaixo do alto prestigio de que sempre se deve procurar cercá-lo a todos os respeitos.
E o que é mais é que tudo é para seu desfavor, tudo é para collocar o Rei - talvez inconscientemente o tenham feito - perante um tribunal de excepção, com preceitos de excepção.
Pode lá ser tal absurdo!
Não deve o Rei, em questões de dinheiro, ter regalias e isenções privativas; a lei constitucional manda a Fazenda Real demandar ou ser demandada, pelo seu mordomo, em acções activas e passivas.
Perante quem?
Por que formulas?
Perante os tribunaes de justiça ordinarios; e pelos processos estabelecidos para todos os cidadãos.
Esta é, e esta deve ser a lei: não pode ser outra.
Não pode ser - affirmo-o com a mais profunda e intima convicção.
Ainda para de futuro, para factos supervenientes, poderia estabelecer-se qualquer formula nova - nunca a confusão dos poderes, nunca commetter ás Côrtes funcções judiciaes d'esta ordem, a não ser numa reforma constitucional, o que seria ainda um absurdo - mas, pelo que toca a factos passados, de modo algum pode ter applicação tal doutrina, como a do artigo 5.°
As Côrtes teem o direito, e até o dever, de se informarem de tudo e de conhecer bem, a fundo, todas as relações havidas e existentes, entre o Thesouro Publico e a Fazenda da Casa Real; mas nunca para serem juizes e julgar quanto se deve.
Essa funcção é do poder judicial - não é do poder legislativo.
As Côrtes exercem uma superior acção fiscalizadora sobre toda a governação do Estado, e para esse effeito teem que conhecer todos os assuntos, para prover de remedio aos males, e exigir as responsabilidades a quem de direito; mas somente o podem fazer nos termos precisos da lei, a dentro das suas attribuições legaes.
D'isto o poder legislativo não pode sair. Não lh'o permitte a Constituição, e se violar a Constituição assume uma attitude revolucionaria.
Não pode ser.
Não se confundam ajustes de contas e apuramentos de saldos, meras responsabilidades civis, com responsabilidades politicas ou criminaes.
São erros gravissimos taes confusões.
Não quero fazer um discurso politico, como já disse, quero, com a maior singeleza, como grande é a minha sinceridade, justificar o meu voto, a respeito d'este projecto, e passo já a occupar-me do projecto da lista civil em si mesmo.
O projecto vem desacompanhado de todos os elementos precisos para se poder votar conscienciosamente.
Tanto se pode dizer que 1 conto de réis por dia é muito, como é pouco. Vamos á lei. A lei deve ser sempre o nosso guia em tudo. Mal vae a quem da lei se afasta.
O artigo 80.° da Carta Constitucional diz que a dotação do Rei e da Rainha, sua esposa, deve corresponder ao decoro da sua alta dignidade.
Nem de mais, nem de menos. O que