28 DE JANEIRO DE 1955 337
A exigência do projecto só virá dificultar as transacções ou fazer que os vendedores prescindam das garantias, para não perderem o negócio.
Conduzirá a resultado contrário ao que se pretende alcançar.
Por isso a Câmara entende que deve manter-se a solução do Decreto n.° 21 087, podendo os contratos a que se refere o artigo 5.° do projecto ser celebrados por escrito particular, com reconhecimento notarial simples.
7. O artigo 6.° do projecto permite a constituição sobre veículos automóveis de hipotecas voluntárias e legais.
Certas autores, como o jurisconsulto brasileiro José da Silva Costa, no seu Direito Comercial Marítimo, Fluvial e Aéreo, vol. n, p. 435, combatem vivamente a admissibilidade da constituição de hipotecas sobre móveis, que consideram derrogação inadmissível da natureza desta garantia real.
Todavia, no direito romano podiam hipotecar-se todas as coisas alienáveis; eram objecto de hipoteca as coisas móveis e as imóveis (Diy., livro XX, título 1.°, De pignoribus et hypothecis, 9, 1). E sempre foi essa a doutrina admitida no antigo direito português.
Só nos tempos modernos, com a criação do registo, surgiu a ideia de limitar a hipoteca aos bens imóveis, por apenas estes serem susceptíveis de ser registados. Mas, desta regra, foram exceptuados os navios, por não se poder invocar, a seu respeito, a mesma dificuldade. Houve hesitações na consagração deste sistema, mas as legislações modernas acabaram por abraçá-lo abertamente, e por toda a parte a hipoteca marítima é hoje admitida.
E compreende-se que o seja.
Como diz Danjon, Manuel de Droit Maritwne, 2.ª edição, p. 606, os navios prestam-se infinitamente melhor que os móveis ordinários à constituição de hipotecas; não estando submetidos à regra «a posse dos móveis serve de título», podem ser objecto do direito de sequela, sem o qual a hipoteca representaria uma garantia precária; e, sendo públicas as mutações da respectiva propriedade, a sua afectação hipotecária não pode ocultar-se, o que seria deplorável.
A estas razões acrescenta Wahl, Pràcix Théorique et Pratique de Droit Maritime, p. 414, uma outra não menos importante: os navios têm um porto de matrícula, que é o equivalente duma situação jurídica fixa.
Ora o que sucede com os navios sucede com os automóveis, desde que em relação a eles se consignou a obrigatoriedade do registo; e esta analogia de situações já foi posta em evidência pêlos teóricos do direito, automóvel.
Foi o que fizeram Annet-Badel & Perraud-Charlantier, Code Pratique de l'Automobile, n, p. 218, ao escreverem: «nada se opõe a que sobre os automóveis se possam constituir hipotecas». Com efeito acrescentam eles possuem uma identidade própria, os seus papéis oficiais, a placa do construtor, o livrete de circulação, o registo na Conservatória da Propriedade Automóvel. As mesmas razões que levaram a admitir a hipoteca sobre os navios, e, mais tarde, sobre os aviões, procedem para os veículos automóveis.
Aliás, entre nós, a este respeito já pode invocar-se uma certa tradição legislativa: o artigo 10.° do Decreto n.° 21 087 permitia a constituição de hipotecas sobre viaturas automóveis, por convenção das partes ou por disposição da lei.
Ocorre, todavia, perguntar: porque se refere o legislador apenas a estas duas espécies de hipotecas?
Sabe-se que hoje, a par delas, é admitida no nosso direito (embora contra o voto de alguns autores, como Guilherme Moreira, Instituições, II, 427) a hipoteca judicial.
O artigo 676.º do Código de Processo Civil determina expressamente que a sen tença, que condenar o réu no pagamento de uma prestação determinada, em dinheiro ou em géneros, mesmo antes de transitar em julgado, é título constitutivo de hipoteca, devendo esta ser registada para produzir efeitos em relação a terceiros.
Ora se o devedor condenado for proprietário de um automóvel, que razão haverá para impedir que, com base na sentença, se registe hipoteca judicial sobre a viatura?
Manifestamente, não há nenhuma razão para isso; e daí entender esta Câmara que sobre os veículos automóveis podem constituir-se não só hipotecas voluntárias e legais, como o projecto determina, mas também hipotecas judiciais.
8. O artigo 7.° do projecto estabelece que aos créditos por venda a prazo de veículos automóveis gozam de hipoteca legal sobro a viatura»; o artigo 11.° enumera os créditos que gozam de privilégio mobiliário sobre os veículos automóveis; e, no seu § único, manda que estes créditos sejam graduados depois dos créditos por venda a prazo.
Compreende-se o intuito do legislador. Sabe-se que o comércio de automóveis assenta essencialmente na base do crédito. São muito frequentes os casos de pagamento de viaturas a prazo - e é mister assegurar aos vendedores o recebimento do respectivo preço.
Todavia, entre procurar-se a consecução deste objectivo e cair-se numa subversão de princípios há um abismo.
O privilégio creditório e a hipoteca são garantias de obrigações; mas naquele entre a coisa que serve de garantia e a obrigação garantida há um certo nexo.
Esta ideia é expressa com muita precisão por escritores nacionais e estrangeiros, como Guilherme Moreira e Henri de Page, quando acentuam que o privilégio se liga à qualidade do crédito e é um atributo legal dele (Instituições, vol. n, p. 348, e Traité Élementaire de Droit Civil Belge, tomo VII, vol. I, pp. 18 e 23).
Já com a hipoteca nem sempre assim sucede. A hipoteca pode garantir qualquer obrigação, mesmo que a coisa hipotecada não tenha com ela relação nenhuma.
Ora, no caso contemplado no artigo 7.° do projecto, a viatura serve de garantia ao seu próprio preço: há entre o crédito e a coisa que o garante a mais directa das ligações.
Logo isto mostra que no aspecto exterior a garantia se apresenta mais com a configuração de um privilégio que com a de uma hipoteca; e, a confirmar, esta ideia, vem o § 1.° do artigo 11.° do projecto estabelecer, como já acentuámos, que o crédito por venda a prazo (a que o legislador quer conceder garantia hipotecária) seja graduado antes dos privilégios mobiliários que o corpo do artigo 11.° enumera.
Isto não pode ser.
O privilégio creditório é a garantia máxima concedida aos credores e precede a hipoteca (veja-se, por todos os autores, Cunha Gonçalves, Tratado, V, pp. 286 e 287); daí ser inadmissível que, com desrespeito desta regra, se mandem graduar créditos privilegiados depois dos hipotecários.
Melhor seria, por isso, a solução dada ao caso pelo artigo 18.° do Decreto n.° 21 087, onde se dispunha que o «crédito por venda a prazo de viatura automóvel (goza de privilégio mobiliário especial, desde que seja registado».
É certo que o registo dos privilégios também representa desvirtuação da sua natureza.