3 DE SETEMBRO DE 1955 593
do Código Civil); em contrapartida o inquilino, além de se comprometer a não deteriorar a casa, a não a desviar do fim para que fora arrendada e a responder por todos os prejuízos que causasse, bem como a defender os direitos do proprietário, assumia a obrigação de pagar a renda, a qual não era apenas contrapartida da concessão temporária do uso da casa, pertencente ao senhorio, mas também a remuneração dos serviços prestados por este.
A facilidade de se arrendarem casas em condições confortáveis e a correlativa faculdade por parte dos senhorios de obstarem à renovação dos contratos ou de
despejarem os arrendatários remissos, davam vulto real àquelas obrigações, e, por isso, embora estivesse em jogo o uso de uma casa, era mais o aspecto pessoal que avultava no contrato, tornando sensível a ambas as partes a função social do proprietário locador.
Suspensa a possibilidade de despedimento do inquilino no fim do prazo do arrendamento e dificultado o despejo por faltes cometidas no cumprimento do contrato, por um lado, e diminuída gravemente, por outro lado, a facilidade de se arrendarem casas em boas condições, todo o sistema se alterou, mesmo naqueles aspectos em que jurídica e teoricamente não foi modificado.
Escudados com a lei, os arrendatários começaram a ver as casas como coisas próprias, e correlativamente muitos senhorios, desejosos de descontentar os inquilinos e compelidos a reduzir as despesas ao mínimo, deixaram de cumprir as suas obrigações, mormente quanto à conservação e decoro dos prédios. Assim se explica, por exemplo, que, segundo o mencionado inquérito de 1949, 17 por cento das habitações em que ele recaiu não tivessem casas de banho e instalações sanitárias, e só muito poucas possuíssem ascensor e aquecimento.
Assim, o arrendamento, de relação obrigacional que era, passou a ter, praticamente, como único objecto a entrega da casa e o pagamento da renda, e assim foi resvalando para um simulacro de direito real, antipático a todos e que suscita mal-estar profundo.
Por esta forma, os arrendatários, praticamente arvorados em titulares de direitos perpétuos sobre o prédio, impunes dos abusos que cometiam, esquecidos de que a casa não lhes pertencia, antes era objecto de uma concessão do proprietário, e sem receberem, por outro lado, quaisquer prestações visíveis dos senhorios, passaram a lamentar-se de pagarem a casa toda a vida, sem nunca a adquirirem. E por espécie de desforra mais ou menos inconsciente, esta mentalidade leva muitos inquilinos, quando encontram casas disponíveis e acessíveis, a mudarem de habitação por simples capricho, e muitas vezes sem cumprirem as suas obrigações.
Por seu lado, os senhorios, a par de desprezarem, muitas vezes, a conservação das casas, sentem-se privados da sua propriedade plena, chegando a vê-la mais como um peso de que não podem libertar-se, do que como um direito, cujo exercício representa o desempenho de uma função social útil.
Assim se gerou o espírito de classe entre os senhorios e entre os inquilinos, como se muitas pessoas não acumulassem as duas situações, e se criou como que um novo elemento do estado das pessoas - o status habitationis -, que é motivo de discórdia e de grave perturbação social.
Com esta revolução soçobraram muitas vantagens do velho contrato de arrendamento. Deixou a aquisição de casas de ser uma aplicação moderada de capitais, com certo carácter familiar, que levava alguns senhorios a habitarem no próprio prédio parcialmente arrendado a outras pessoas. Cessou a possibilidade de os proprietários, temporariamente ausentes, darem às suas
casas uma aplicação rendosa, sem se privarem delas definitivamente. Desapareceu ainda o meio de muitas famílias escolherem habitações adequadas a necessidades transitórias, criando-se, ao invés, a tendência de cada arrendatário se enquistar definitivamente numa casa, muitas vezes mais ampla ou restrita do que impunham as suas necessidades; em alguns países inquéritos habitacionais revelaram que muitas pessoas preferiam as cosas arrendadas às próprias, pela facilidade de progressivamente as ajustarem ao número de pessoas de família, ao lugar do trabalho, etc., e é evidente que essa solicitação, à qual respondia eficazmente o arrendamento, não tem nas circunstâncias presentes a satisfação desejável.
A expansão da propriedade horizontal, se bem que este instituto não se prenda directamente com o problema do arrendamento, terá possivelmente algumas repercussões vantajosas neste assunto.
O progressivo acesso de muitas famílias à propriedade e o fomento da construção, pelo emprego de pequenas economias que hoje não permitiriam adquirir um prédio, trarão, é de esperar-se, algum alívio à situação presente. E, na medida em que tirarem ao inquilinato o carácter de solução única e fatal para o problema da habitação, poderão concorrer para o regresso do contrato de arrendamento à sua função e regime natural.
E se esta evolução foi suficientemente ampla e gradual, susceptível de acção eficaz, mas sem perturbar bruscamente a actual estrutura económica, no tocante ao problema da habitação, não é temerário confiar-se em que, no futuro, se atenue muito esse problema nos seus aspectos económicos, morais e sociais.
Não é lícito, como é óbvio, reclamar-se à propriedade horizontal toda a acção necessária para solucionar este problema. As causas dele são numerosas e complexas, e só o estudo e a actuação de conjunto poderiam garantir a melhoria sensível das circunstâncias presentes; cremos, todavia, que a expansão da propriedade por andares pode ter neste campo influência muito importante.
4. Outro aspecto da propriedade horizontal, que importa pôr em relevo, é o de ela poder contribuir, por modo notável,- para facilitar o comércio jurídico e a justa repartição, da riqueza.
Em tempos passados a propriedade das casas pouco representava na riqueza privada, pois era, acima de tudo, a propriedade rústica, precisamente chamada de raiz, que constituía o núcleo principal do património familiar.
Modernamente esta situação modificou-se profundamente e, mas grandes cidades, o problema apresenta-se ao invés, particularmente desde o começo do movimento urbanista.
No distrito de Lisboa, por exemplo, já em 1920 os prédios urbanos representavam 32 por cento do número total de prédios sujeitos a contribuição predial e correspondiam a, 82,6 por cento do rendimento colectável global; em 1953 aquelas percentagens já tinham passado, respectivamente, para 39 por cento e 93,6 por cento, verificando-se que esta última - a do rendimento colectável- tende fortemente para absorver a quase totalidade do valor sujeito àquela contribuição. No distrito do Porto, os prédios urbanos representavam em 1920 23 por cento do número de prédios e correspondia-lhes 66,9 por cento da totalidade do rendimento- colectável; em 1953 já os referidos prédios representavam 29 por cento do conjunto e o rendimento respectivo tinha-se elevado para 84,7 por cento do rendimento colectável global.