794 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 84
rança de tuia operações, torna-se, por esse facto, um serviço público de interesse capital.
Como algures escreveu o Prof. Dr. Paulo Cunha, «a vida juridico-económica da propriedade imobiliária, com suas repercussões decisivas na organização do crédito e na manutenção da paz civil, assenta na ideia de segurança, essa segurança que, na frase sugestiva de Petrini-Paul, é como que o oxigénio de toda a actividade jurídica relativa a prédios e seus complexos desenvolvimentos. Ora o registo é a mola real da segurança».
3. O grau de segurança que o registo predial imprime aos negócios jurídicos sobre imóveis é, naturalmente, tanto mais ampla e eficaz quanto mais largo uso se fizer do registo, mas o carácter facultativo deste, aliado a muito descuido e ignorância, faz que, sobretudo nos nossos meios rurais e particularmente naqueles onde a propriedade se encontra mais dividida, a vantagem de registar seja praticamente desconhecida ou desprezada pelo maior número. Em muitas comarcas o recurso às conservatórias é insignificante e o livro Diário gasta-se ingloriamente a declarar ... que não houve apresentações. Não se regista, como não se titula, sequer, a propriedade, e as consequências desta prática negativa manifestam-se nas numerosas contendas que os tribunais são, quotidianamente, chamados a decidir, nem sempre apenas no foro civil.
A situação a este respeito não é hoje muito diferente da que descrevia, há mais de cem anos, o conselheiro Francisco da Silva Ferrão:
É geralmente sabido que, entre nós, talvez mais de metade, ou ainda de dois terços, dos proprietários não têm títulos alguns autênticos que provem o seu direito, e tudo se lhes reduz, portanto, ao direito resultante da tranquila posse ou da prescrição. (O Cadastro e a Propriedade Predial, 1849).
A manutenção da paz civil e a segurança do direito são razão bastante para que se vença a inveterada rotina do registo deixado ao livre arbítrio dos interessados, que serão, de resto, os principais beneficiários da obrigatoriedade, como hoje são quem sofre os maiores riscos do regime facultativo.
Na sua função de defensor da ordem jurídica, é legitimo ao Estado tomar as medidas compulsivas necessárias, mesmo quando elas se destinem a forçar os indivíduos a zelarem adequadamente os seus interesses.
Mas não são apenas os interesses individuais que estão em cansa e se trata de proteger. É, sem dúvida, de interesse público que a situação jurídica da propriedade se revele com clareza, a toda a gente, através do registo predial; que por meio dessa publicidade se assegure a honestidade do comércio de imóveis e de todos os negócios jurídicos de que eles são objecto ou garantia; que se previnam as fraudes e os conflitos e as dificuldades postas ao legitimo exercício dos direitos pela omissão dos registos, ou sua extemporânea execução.
4. Interessante é notar que a primeira tentativa de organização do registo predial no nosso país se fez sob o signo da obrigatoriedade e, justamente, em conjugação com o cadastro geométrico da propriedade.
Referimo-nos ao notável diploma que foi o Alvará de 9 de Junho, de 1801, de que vale a pena transcrever as seguintes passagens :
Que em cada huma das Comarcas destes Reinos haja hum mathematico, que seja o Cosmógrafo delia ... para a execução da Carta Topográfica da mesma Comarca...
Que cada hum dos referidos Cosmógrafos haja de dar principio no seu exercício pela formação de hum Livro em que se contenha:
Primò, a Carta Geral da sua respectiva Comarca;
Secundo: e em ponto maior, as Cartas particulares de cada huma das Villas, e Concelhos, que nella são compreendidos...
Alem do referido Livro, deverá formalizar outro de Cartas particulares, também em ponto maior, em que se descrevão e configurem todas as Herdades, Quintas, Prazos, Fazendas, e outros bens, assim Ruraes como Urbanos, com suas dimensões, e demarcações actuaes, conforme pertencem, e as possuem os seus respectivos Proprietários.
Também deverá formalizar outro Livro, que servirá de Registo Geral, e no qual se registem os títulos de cada hum dos Possuidores, das respectivas Propriedades, que serão obrigados a fazello assim, sob pena de lhes serem apprehendidos os rendimentos delias, em quanto não as registarem, e serem applicados para as Obras Públicas da Comarca.
E para que este Registo se haja de continuar em méthodo, e forma regular, Ordeno, que sempre que cada huma Propriedade passar de um Possuidor para outro por Titulo de Herança, Doação, Compra, ou qualquer outro dos que em Direito transferem Domínio, e Posse, seja o novo Possuidor obrigado a fazer registar o seu competente Titulo, sob pena de não ser reconhecido por senhor daquela Propriedade, e de se applicar o rendimento delia na forma assima declarada...
O referido Registo se fará, confrontando-se a Propriedade assim adquirida com o Livro dos Mappas, e Propriedades, reportando-se a elle o Registo, que novamente se fizer, e ao Assento, que delia já se achar lançado no Livro do Registo Geral; e declarando-se nas costas do Titulo registado, que elle o fica, e que se cumprio esta necessária, e impreterivel solemnidade.
Não poderiam definir-se de modo mais nítido as relações necessárias entre o registo predial obrigatório e o cadastro da propriedade. Cento e cinquenta anos passados, o problema continua a ter toda a actualidade e estamos justamente ocupados em procurar a fórmula da mais conveniente articulação das duas instituições.
5. O primeiro diploma em que se organizou rudimentarmente um serviço de registo predial, melhor, de registo de hipotecas, foi o Decreto de 26 de Outubro de 1836. Ai se estipulava a obrigatoriedade do registo, sem o qual os encargos a ele sujeitos eram ineficazes.
Depois, na Lei Hipotecária, de l de Julho de 1863, a verdadeira precursora do Código do Registo Predial dos nossos dias, em que o registo se organiza já em sistema, sob alguns dos princípios que hoje o informam, a obrigatoriedade era postulada em termos semelhantes: os actos sujeitos a registo não podiam ser invocados em juízo, entre as próprias partes, seus herdeiros e representantes, sem que estivessem registados.
O Código Civil, que reproduziu na generalidade as disposições da Lei de 1863, abandonou no entanto o regime da obrigatoriedade do registo para a eficácia dos actos entre as partes, limitando-se a exigi-lo para que produzam efeito em relação a terceiros (artigo 951.º).
Mais recentemente, o Código do Registo Predial de 29 de Setembro de 1928 (Decreto n.º 15986) tentou restaurar o principio da obrigatoriedade nos termos da Lei de 1863, prescrevendo no seu artigo 278.º:
Nenhum acto sujeito a registo pode ser invocado em juízo senão depois de registado.