2 DE ABRIL DE 1956 797
conservação parece dar-se razão aos que atribuem ao cadastro tão limitado alcance.
Mas ele é, acima de tudo, um poderoso instrumento de caracter político e económico: o registo geral do património imobiliário da Nação, ou, para usar á antiga linguagem, o tombo nacional da propriedade rústica, e ao mesmo tempo o inventário da riqueza agrícola, efectiva e potencial do território português. Serve, sim, para a organização das matrizes prediais, mas tem outros fins, não menos importantes. «Base e instrumento de todas as reformas sociais, jurídicas e económicas de que depende a prosperidade da propriedade rústica» lhe chama o preâmbulo do Decreto n.º 11 859. E da prosperidade da propriedade rústica depende a prosperidade de toda a vida nacional.
A política agrária, no sentido do mais racional aproveitamento das potencialidades do solo pátrio; a política do crédito agrícola, como factor indispensável do desenvolvimento da produção; a política demográfica, orientadora da colonização interna e da distribuição dos excessos populacionais; a política de fomento hidroagrícola, destinada a promover a fertilização dos terrenos incultos ou deficientemente produtivos; a política social, dirigida ao ordenamento das relações entre os proprietários e os trabalhadores rurais-todas essas actividades particulares e muitas outras, em que se desdobra a política geral da Administração no vastíssimo campo da acção do homem sobre a terra, hão-de ter por fundamento e critério orientador os úteis ensinamentos que um cadastro bem organizado se destina a fornecer.
10. Do ponto de vista da actividade jurídica, não são menores os serviços que o cadastro pode prestar. «Complément de mon Code» lhe chamou Napoleão.
De jure condendo, o mais perfeito conhecimento das realidades, que o cadastro proporciona, sugere ao legislador as medidas adequadas à melhor regulamentação das complexas relações jurídicas sobre a propriedade e, de um modo geral, de todas as relações de direitos reais.
Mas, independentemente de futuros aperfeiçoamentos legislativos, o cadastro traz ao direito existente um novo elemento de certeza e segurança do mais alto valor.
Por um lado, realizando, por natureza, a rigorosa delimitação e mensuração dos prédios, contribui para que se evitem, ou ajuda a resolver quando se levantem, as contendas sobre questões de limites. Por outro lado - e está aqui o seu principal merecimento como auxiliar do direito-, ele traz consigo o único critério eficaz de exactidão e certeza para a resolução do velho problema, tão grave como difícil, da identificação da propriedade como objecto de relações jurídicas.
A terra só tem interesse jurídico como coisa susceptível de apropriação. É a propriedade que estabelece o nexo jurídico entre a terra e o homem. A terra vale para ele como objecto de direitos, justamente de todo o conjunto de direitos em que a propriedade se desdobra, desde o de fruição até ao de alienação.
Mas, para ser objecto de direitos, há-de estar perfeitamente definida e individualizada a porção de terra sobre que se exercem os direitos de cada um. Essencial ao direito de propriedade é o direito de exclusão e defesa, que pressupõe, precisamente, a delimitação e separação nítida do que é próprio do que é alheio. Quanto mais perfeita for essa separação mais certos são os direitos individuais, mais raras as ocasiões de conflito e mais sólidos os fundamentos da ordem jurídica.
Tal foi o útil concurso trazido ao direito pelo cadastro geométrico da propriedade rústica: a possibilidade da perfeita identificação dos imóveis, com todas as suas importantes consequências na definição da esfera jurídica do indivíduo e na certeza e segurança dos negócios jurídicos sobre a propriedade.
11. Problema muito importante é o das relações do cadastro e do registo predial.
Historicamente, podem considerar-se dois aspectos da mesma instituição, que só as necessidades de ordem técnica levaram a separar, nos tempos modernos.
Os antigos tombos da propriedade, verdadeiros precursores do cadastro e do registo predial dos nossos dias, preenchiam ao mesmo tempo as funções que hoje cabem aos dois institutos: descreviam as terras, com sua extensão, confrontações, géneros de cultura, etc., registavam as rendas, direitos e foros a que estivessem sujeitas e arquivavam os respectivos títulos de aquisição. Sendo, porém, o seu principal objectivo a inventariação dos bens e direitos das corporações, estabelecimentos e indivíduos a que diziam respeito, prevalecia neles o aspecto jurídico, reduzindo-se a função cadastral a fixar o conteúdo e limites da propriedade inventariada.
Eram, por isso, organizados por magistrados judiciais, com a audiência dos proprietários confinantes e demais interessados, e assentavam no exame da validade dos títulos e na medição e demarcação das propriedades. Só depois de tombada juridicamente a propriedade, isto é, julgados os títulos e marcados os limites, é que intervinha o geógrafo para levantar a planta em rigorosa conformidade com o tombo judicial. «É desta separação sapientíssima, providentíssima, na organização dos tombos - diz o duque de Ávila- que provém a grande superioridade destes sobre os cadastros modernos» (ob. cit., nota XXIII).
No Alvará de 9 de Junho de 1801, como já vimos, o cadastro e o registo da propriedade eram organizados em serviço único, a cargo dos cosmógrafos do Reino. Além da elaboração das cartas topográficas das respectivas comarcas e das vilas e concelhos nelas compreendidos, os cosmógrafos teriam de formalizar dois livros: um de cartas particulares em grande escala, com a descrição e configuração de todas as herdades, quintas, prazos, fazendas e outras bens, assim urbanos como rurais, com suas dimensões e demarcações actuais; outro, denominado «livro de registo geral», em que os proprietários dos imóveis descritos no livro de cartas ficavam obrigados a fazer registar os respectivos títulos, sob pena da apreensão dos rendimentos dos prédios enquanto o não fizessem.
O problema, que hoje nos ocupa, da articulação ou conjugação do cadastro com o registo predial era regulado em termos precisos: nenhuma transmissão da propriedade por herança, compra, doação ou outro meio surtiria qualquer efeito enquanto o adquirente não fizesse registar o seu titulo. O registo seria efectuado «confrontando-se a Propriedade assim adquirida com o Livro dos Mappas, e Propriedades, reportando-se a elle o registo, que novamente se fizer, e ao Assento que delia já se achar lançado no Livro do Registo Geral».
Quando, em 1848 e 1849, o Governo voltou de novo a sua atenção para a necessidade de organizar o cadastro e tomou nesse sentido algumas medidas prometedoras, a questão das relações do cadastro com o registo da propriedade foi objecto de atenta consideração e sobre ela se pronunciaram eminentes jurisconsultos.
António José de Ávila, no seu notável relatório, atribuirá ao cadastro como função dos mais importantes a de titular a propriedade. Concluía ele:
Hoje, os homens que em todos os países se tom ocupado da ciência do cadastro concordam nos seguintes princípios:
l -º Que o cadastro não pode nem deve de forma alguma limitar-se a servir de base à repartição da contribuição; que esta deve ser, sem dúvida, uma das suas aplicações; porém, não a única nem a principal;