10 DE ABRIL DE 1959 605
do que as que ao Reichsprãstdent eram atribuídas pela Constituição de Weimar) precisaria de ser como que aclamado una voce, «ungido» pela Nação. Era o exemplo do documento de Weimar (que igualmente consagrava, como se sabe, um dualismo do Executivo) que se tinha presente e se desejava pôr entre nós a prova.
Simplesmente, é sabido que a nossa Constituição admitiu para o Estado uma base corporativa (artigo 5.º) - e pode perguntar-se por que é que se não tiraram desta afirmação de princípio, desde logo, todas as consequências.
«É evidente que não podia de um momento para o outro criar-se um Estado corporativo sobre a nação inorgânica». (O. Salazar, ob. cit., IV, pp. 432 e seguinte).
Daí que não fosse viável, logo de início, pensar noutra solução, mais em harmonia com a concepção corporativa, para o problema da escolha do Presidente da República. Só à medula que se fosse «aperfeiçoando e consolidando o regime» é que se poderia pensar em derivar da organização corporativa solução para certos problemas constitucionais e políticos, como, por exemplo, o problema do processo de designação do Chefe do Estado (autor, ob. e vol. cits., pp. 432 e seguintes).
Ora a organização corporativa, como é bem sabido, após uma paragem e certos desvios mais ou menos justificados pela imposição das circunstâncias adversas da segunda grande guerra, retomou nos últimos anos a sua marcha e recuperou o seu inicial vigor, tendo sido recentemente coroada com a criação das primeiras Corporações. E porque o nosso institucionalismo é integral convém notar, ao lado do progresso da organização corporativa das actividades económicas, o revigoramento das instituições de ordem administrativa, moral e espiritual.
E talvez por isso a altura de se tirarem da concepção iustitucionalista, na forma e com o espírito em que está consagrada em Portugal, algumas das suas principais inferências, uma das quais diz justamente respeito à eleição do Chefe do Estado.
Acresce que as perspectivas sobre os vantajosos resultados do processo da eleição presidencial directa só puderam ser confirmadas enquanto o País viveu na atmosfera calma da época dos anos de 30. A segunda grande guerra, porém, desencadeou os ventos uivantes da febre política e deu nova vida aos fermentos, longamente adormecidos e aparentemente quase extintos, a divisão ideológica e partidária. Impossível se tornou evitar que o País fosse contagiado pelo novo e agreste clima político-espiritual divulgado na Europa com o fim da guerra, advogando alguns o regresso à vida política partidária e o retorno à democracia de partidos.
A experiência de muitos Estados demonstra como o vento que varreu a Europa nessa época foi apenas o primeiro passo para a perda das liberdades civis e, não poucas vezes, da própria independência nacional.
Quantos eram ou passaram a ser partícipes desta orientação ou movimento político entenderam logo ser a eleição presidencial a oportunidade sobre todas adequada para, guardadas as formas constitucionais, fazerem triunfar, no clima de agitação política e de exacerbamento dos paixões gerado por uma campanha eleitoral febril e sem barreiras» a corrente de ideias que precisamente tinha em mira a restauração da democracia partidária. Tudo estaria em conseguir que da eleição presidencial saísse de qualquer maneira vitorioso o homem que se tivesse apresentado ao eleitorado com o «programa» de que fizesse parte exactamente uma reforma constitucional em tal sentido. Seja como for, o que se não; pode negar é que o sistema da eleição do Presidente da República directamente pela Nação não fora concebido pela (Constituição como destinado a dar ensejo, de cada vez que o processo da sucessão presidencial se instaurasse, a que se submetesse à deliberação da Nação o mérito relativo de dois ou mais programas políticos globais: foi concebido, antes, para que, o mais possível sem debate, dada a dignidade da função presidencial, que dele poderia naturalmente sair afectada, se plebiscitasse o homem que continuasse a dar efectivação ao «programa» fixado na própria Constituição.
Não admira, pois, que o Governo, fazendo o inventário das duas campanhas eleitorais de novo estilo para a eleição do Presidente da República que tiveram lugar no período imediatamente a seguir à guerra, e ponderando os prejuízos que para a dignidade da função presidencial advieram da rudeza e incontinência desses debates, tenha em 1951 posto o problema da alteração do modo ou sistema de eleição do Presidente.
Simplesmente, não foi feliz na forma como pôs às Câmaras esse problema. O Governo não revelou, na verdade, na forma como redigiu a sua proposta, estar senhor de ideias seguras e definitivamente assentes acerca da solução coerente a dar a este assunto - tanto que se limitou a propor que o modo de eleição do Presidente da República deixasse de figurar na Constituição.
Como em todas as constituições republicanas do Mundo se prescreve o modo de eleição do Chefe do Estado, a Câmara Corporativa e a Assembleia Nacional rejeitaram a proposta governamental quanto a este ponto.
Nada obstava, é certo, a que elas aproveitassem o ensejo para emendarem o artigo 72.º da Constituição, substituindo o sistema de sufrágio directo dos cidadãos eleitores por qualquer dos demais que o direito constitucional comparado proporciona, e designadamente pelo que hoje é proposto. Mas a própria indecisão do Governo, que não terá significado certamente senão que ele não se fixara ainda num sistema que considerasse mais de acordo com a concepção corporativa e especialmente satisfatório para substituir o vigente, eliminando os seus defeitos supervenientes e conservando as suas vantagens, não deixou de, por assim dizer, contagiar as Câmaras, que vieram a pronunciar-se, longe, aliás, da unanimidade, pela conservação do sistema em vigor. Podemos considerar a posição tomada em 1951 pela Câmara Corporativa e pela Assembleia Nacional como uma posição provisória, na dependência do ritmo de evolução da organização corporativa e naturalmente sujeita à contraprova dos acontecimentos e vicissitudes posteriores, nomeadamente da lição a colher de nova eleição presidencial. Ora que resulta dessa contraprova?
De 1951 para cá, tudo concorreu para persuadir da efectiva necessidade de prescindir de um sistema que acabara por se revelar, na conjuntura política dos nossos dias, a melhor forma, não de consagrar um homem e fazer dele um símbolo da unidade nacional, mas de o apoucar e denegrir, além de o transformar em símbolo de luta e bandeira de divisão dos Portugueses. O sistema é, aliás, também molesto e inconveniente para os candidatos vencidos na eleição presidencial, porque saem também, naturalmente, mal feridos de uma contenda civil - ou incivil -, em que se tornou hábito mobilizar argumentação de todos os níveis, ainda os mais baixos.
Tornou-se, além disso, particularmente evidente, depois daquela data, que a eleição presidencial não pode servir de ocasião para um debate de concepções sobre a vida política, para um veemente embate ideológico de facções, tão aceso e encarniçado que chega a roçar pelo desmando e pela desordem para-insurreccional.