25 DE OUTUBRO DE 1968 1757
A primeira e importante limitação respeita ao poder concedido ao tribunal de recurso de qualificar diversamente o facto criminoso, ainda que mais gravemente, isto é, de subsumi-lo a um preceito que descreva um tipo de crime diferente, mesmo que mais grave. Trata-se, na terminologia usada pelo projecto de lei, do poder de "alterar o título da incriminação constante da decisão recorrida".
Este poder de convolação atribuído ao tribunal superior pelo direito vigente (artigo 667.º do Código de Processo Penal) está em correspondência com o poder de convolação que detém o tribunal de 1.ª instância, dentro dos limites assinalados nos artigos 447.º e 448.º do mesmo Código45 e 46
A justificar a limitação acabada de referir, diz-se no projecto de lei.
A possibilidade de o tribunal, mesmo em recurso só interposto pela defesa, alterar o título de incriminação e decretar a pena correspondente a nova infracção, ainda que seja mais grave do que a da decisão recorrida, é expressamente determinada pelo legislador italiano a e pacificamente reconhecida pela doutrina e jurisprudência processual alemã. Essa possibilidade justifica-se inteiramente. Na, verdade, a proibição da reformatio in pejus não deve ir até
ao ponto de impedir que o tribunal superior corrija uma incriminação defeituosa efectuada na 1.ª instância. A proibição da reformatio in pejus só tem sentido enquanto garante ao arguido recorrente que o tribunal superior, dentro dos mesmos limites legais, não será mais severo do que foi o tribunal de 1.ª instância. É essa, aliás, a feição tradicional do instituto. Além de que, se a proibição fosse ao ponto de cercear os poderes de convolação do tribunal de recurso a que há pouco se aludiu, alterar-se-ia num aspecto importante a feição do sistema processual em vigor.
21. b) A proibição da reformatio não deve obstar, pois, a que o tribunal superior possa dar à infracção uma qualificação jurídica diversa e mais grave.
Ocorre, porém, perguntar poderá igualmente o mesmo tribunal qualificar diversamente as circunstâncias, quando elas sejam modificativas, isto é, quando conduzam á alteração da medida legal da pena correspondente a cada tipo de crime?48
Repare-se que é a própria lei que, para efeitos de convolação, manda atender às circunstâncias agravantes modificativas da reincidência e da sucessão de crimes, ainda que não alegadas, desde que resultem do registo criminal ou das declarações do réu (§ 2.º do artigo 447.º) E, assim, mal se compreenderia que o mesmo não sucedesse no tribunal superior, ainda que em recurso só interposto pelo réu.
Acentue-se, mais uma vez, dentro da orientação do projecto de lei, que "o sentido da proibição da reformatio in pejus não é permitir que se violem as regras sobre a medula legal da pena, mas sim garantir ao arguido recorrente que não será prejudicado pela diferença de critérios entre os vários tribunais quanto à concretização da medida judicial da pena".
Mas, só realmente é assim, então haverá que excluir da proibição todas as circunstâncias modificativas, ou seja, circunstâncias quo têm valor predeterminado na lei.
É o caso da reincidência e da sucessão de crimes, como já vimos, cuja agravação especial está prevista nos artigos 100.º e 101.º do Código Penal, respectivamente, é o caso também da habitualidade e tendência criminosa (artigo 93.º), e, segundo alguns, da acumulação de crimes (artigo 102.º).
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45 Art 447.º O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos quo constem do despacho de pronúncia ou equivalente.
§ 1.º A decisão a que se refere este artigo nunca pode condenar em pena superior á competência do respectivo tribunal.
§ 2.º As circunstâncias agravantes da reincidência e da sucessão de infracções que resultarem do registo criminal ou das declarações do réu serão sempre tomadas em consideração, ainda que não tenham sido alegadas. Se, por efeito delas, se dever aplicar uma pena que exceda a competência do tribunal, proceder-se-á nos termos do artigo 145.º
Art 448.º O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, com fundamento nos factos alegados pela defesa ou dos que resultem da discussão da causa, se, neste último caso, tiver por efeito diminuir a pena.
46 Esta faculdade de convolação aceita-se inteiramente "Na verdade, o tribunal não está, na sentença condenatória, adstrito à qualificação jurídica dos factos feita no despacho de pronúncia. O tribunal que julga incrimina os factos como entender. E a mesma independência existe quanto à qualificação jurídica das circunstâncias (Revista do Legislação e Jurisprudência} ano 68.º, p. 386). E compreende-se perfeitamente essa independência" "Quanto à qualificação jurídica, isto é, à aplicação e interpretação da lei, é manifesto que o réu não pode contar com aquela que o despacho de pronúncia adoptou.
Ela pode, evidentemente, ser alterada, sem que se prejudiquem os legítimos interesses do réu, a quem fica sempre aberto o caminho de discutir livremente a qualificação jurídica dos factos e de recorrer contra sentenças que façam uma apreciação ou interpretação da lei que julgue erróneas.
Seria exorbitante e injustificado que se atribuísse ao réu a vantagem de beneficiar com qualquer erro de apreciação jurídica cometido no despacho de pronúncia ou equivalente. Da mesma maneira seria injustificado e vexatório que se vinculasse o tribunal que tem de julgar a certa interpretação da lei seguida pelo juiz que pronunciou.
A orientação do nosso Código de Processo Penal, sob este ponto de vista, é, por isso, a única defensável o a geralmente seguida. O recente Código de Processo Penal italiano (de 10 de Outubro do 1930) consagrou-a igualmente na primeira parte do seu artigo 477.º" (cit Revista, p. 337) (in Pareceres do Ministério Público, p. 275, do Dr. Manso Preto)
O que se não pode é imputar ao arguido, para lhe agravar a responsabilidade, factos que não constem da acusação e da pronúncia, os quais, assim, não pôde contestar, organizando devidamente a sua defesa.
CF ainda Prof Eduardo Correia, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, pp. 140-148.
47 Certos autores italianos entendem que o tribunal superior, conquanto possa dar ao crime uma definição jurídica diversa, ainda que mais grave, não pode agravar a pena (cf Sabatini, loe cit , 1127, n.º 9, e Pisani, ob cit , pp. 122 e seguintes). No caso, porém, de a pena correspondente à nova definição exceder a competência do tribunal de 1.ª instância, anular-se-á o processo, a fim de que o Ministério Público promova o prosseguimento do mesmo no tribunal competente.
Entro nós, a consequência de, por efeito dos poderes de convolação, se atribuir ao crime uma qualificação mais grave, cuja pena exceda a competência do tribunal respectivo, é a incompetência (§§ 1.º o 2.º, in fine, do citado artigo 447.º), excepção que pode e deve ser conhecida oficiosamente (artigo 139.º).
Esta doutrina deve entender-se extensiva ao caso da convolação levada a efeito no tribunal do recurso.
48 Estas circunstâncias modificativas da pena podem, por sua vez, implicar uma diminuição ou elevação da moldura abstracta da pena e fala-se então, respectivamente, em circunstâncias modificativas "atenuantes ou que privilegiam" e circunstancias modificativas "agravantes ou qualificativas".
As circunstâncias modificativas da pena abstracta podem ainda ser comuns, isto é, verificarem-se relativamente a todo e qualquer crime, ou especiais, quer dizer, verificáveis relativamente a um grupo ou só a certos crimes (cf Prof Eduardo Correia, Apontamentos sobre as Penas e Sua Graduação no Direito Criminal Português, 1953-1954, p. 116, e Direito Criminal, II, pp. 141-142. e Prof Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, II, pp. 230 e seguintes).