25 DE OUTUBRO DE 1968 1753
E esta consequência é certamente inadmissível. Mas é-o justamente porque, ao contrário do que sucede no processo civil, o que está directamente em causa no processo penal é o interesse público, o qual exige a exacta actuação do direito penal 29
E será naturalmente por esta razão essencial que o projecto de lei em apreciação admite a reformatio sempre que o tribunal superior entenda que o título de incriminação é diverso e mais grave
A natureza pública do interesse caracterizador do processo penal serve do mesmo modo para afectar o valor dos argumentos do interesse em recorrer e do apelo à equidade, referidos acima [alíneas b) e c)].
Quanto ao fundamento do favor rei ou favor libertatis, já vimos as críticas que se lhe fazem
A importância que por vezes se lhe atribui nem sempre corresponde às veidadeiras exigências do processo penal Não pode esquecer-se, na verdade, que a liberdade do réu não é o único interesse a ter em vista, porque a justiça penal não pode deixar de tutelar também eficazmente o interesse da vítima, por vezes tão valioso como a liberdade do criminoso ou mais valioso que ela (homicídio, violação, roubo, etc ), e o próprio interesse geral da defesa da sociedade ofendido ou posto em perigo pela actividade criminosa
Impõe-se evitar o amolecimento ou enfraquecimento de repressão penal, não transformando o direito penal numa lei esvaziada do sentido de justa retribuição, numa lei de protecção no deliquente, num "direito premial", na expressão de G Bettiol 30 31
A concepção de Pisani [alínea 2)] afigura-se ainda a mais ajustada, na medida em que relaciona a proibição da reformatio com a estrutura do recurso como meio de assegurar uma mais perfeita aplicação da lei Simplesmente, num momento posterior -o do julgamento pelo tribunal de recurso - nega-se a este a possibilidade de realizar a exacta aplicação do direito ante a barreira que se lhe levanta de agravar a situação do recorrente, quando essa agravação se imponha em face dos normativos legais
10. Não obstante a importância meramente relativa dos fundamentos aduzidos em favor da proibição da reformatio, eles constituem no seu conjunto algo de positivo que não pode desprezar-se na problemática que vem prendendo a nossa atenção
Convirá, no entanto, que demos mais um passo na indagação que vimos fazendo.
2) A "reformatio in pejus" e os formas políticas de Estado
11. A reformatio ou a sua proibição estarão necessariamente ligadas a certos tipos de Estado 9
29 Cf Prof Cavaleiro de Ferreira, Curso de Preceito Penal, I, pp 45 e 46
30 "Neste momento histórico -escreve o autor-, em que assistimos ao irromper de tendências de orientações, de legislações, que atacam os institutos tradicionais do direito penal, afigura-se-nos legítima uma pergunta, que até pode parecer paradoxal não estará, porventura, o direito penal a transformar-se num direito premial?
De fundamento e de razão do castigo retributivo, não estará o direito penal a passar para decididas posições, não só de prevenções pedagógico-profilácticas, mas até de prémio?" (in O Problema Penal, p 222, tradução de F de Miranda)
31 Não se pense que com isto se pretende defender um direito penal de terror, com base na ideia do uma defesa ou protecção social contra o crime, através do caminho utilitário da prevenção geral, ou pela via da prevenção especial, na concepção positivista (Cf o relatório do projecto da parte geral do Código Penal, 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia)
Pode dizer-se que o direito é, em larga medida, a expressão cristalizada da política Com efeito, não só todo o fermento da vida cultural de um povo e todos os seus valores predominantes, mas ainda todas as suas fundamentais concepções políticas se espelham no quadro do ordenamento jurídico, especialmente no quadro do direito penal.
O direito é, deste modo, o precipitado histórico de uma dada orientação política
Mas, se assim é quanto ao direito substantivo, não o é menos quanto ao direito adjectivo, ou processual
"Se o direito - como escreveu Radbruch - é a forma por excelência da vida social, o direito processual, sendo o mais formal de todos os seus ramos, é, por sua vez, como que a "forma dessa forma" a mais instável, a mais sensível, e assim como as extremidades dos mastros de um navio respondem com uma amplitude de oscilação máxima aos mínimos movimentos do seu corpo, do mesmo modo as mais pequenas transformações da vida social nas suas violentas oscilações, logo primeiramente se repercutem na estrutura e desenvolvimento do processo "
O processo seria, assim, depois deste interessante símile, uma espécie de sismògrafo ou aparelho de máxima precisão, capaz de registar a uma grande distância os mínimos movimentos e deslocações das camadas de terreno no subsolo da vida social 32
Pois, apesar desta relação estreita entre o direito processual e os fenómenos sociais e políticos, pode afirmar-se que a admissibilidade ou inadmissibilidade da reformatio in pejus não está necessariamente ligada à política, isto é, a um determinado tipo de Estado
Assim, Estados tradicionalmente havidos como "democráticos" só há poucos anos abandonaram o sistema da reformatio (Inglaterra, em 1964), ou ainda o conservam (certos cantões da Suíça), enquanto o Código de Processo Penal italiano, de 1930, nascido à sombra do regime fascista, manteve a proibição da reformatio, e na Rússia, onde também está afastada a concepção de "Estado de Direito", a partir de 1958 foi acolhida a proibição
A problemática da matéria em causa vem efectivamente de épocas em que as suas coordenadas eram alheias a pressupostos do ideologia política.
No entanto, se a questão em análise não está necessariamente ligada à política tout court, não se pode negar uma certa conexão com pressupostos de índole filosófica geral e de, concepção do mundo, designadamente de carácter humanitário
Mas parece que a reformatio não repugnaria - bem ao contrário-, pelo menos em certa medida, à feição autoritária do direito ou do Estado, que tem vindo a projectar-se na estrutura do processo a partir de determinada altura do século XX
Esclareça-se, porém, a fim de evitar possíveis equívocos, que este autoritarismo é coisa bem diferente do chamado totalitarismo
O autoritarismo não tem aqui o sentido vulgar desta palavra nos usos correntes da vida, significando excesso de autoridade, despotismo ou demasiada severidade no exercício de qualquer mando "É antes, como conceito, uma projecção do mesmo conceito de "social"
Em vez de se partir nela (concepção autoritária) da afirmação dogmática de quaisquer direitos originários naturais do indivíduo, como de um prius metafísico e abs-
32 Cf Prof Cabral de Moncada, "O processo perante a filosofia do direito", 1961, in Boletim da Faculdade de Direito (suplemento XV), vol I. pp 55-56